Foto: Jan Hladík [CC BY-SA 3.0 (https://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0)]
por Gustavo Cangello de Carvalho Rocha*
No início do seu livro Kafka: pró e contra, Günther Anders se coloca a seguinte questão: “Parte da obra de Kafka trata do judeu, como, por exemplo, O Castelo e a história de camundongos Josefine. Mas a palavra ‘judeu’ ocorre raramente. Nas peças denominadas A Muralha da China, a palavra ‘judeu’ chega até a ser substituída pela palavra ‘chinês’. Por que motivo Kafka consume esta troca de nomes evidentemente obscurecedora?” (p. 16). O intuito deste ensaio é oferecer uma interpretação para essa questão enfocando a obra Um artista da fome.
Trata-se de uma coletânea de textos que o autor publica ainda em vida, em 1924, e cujas peças datam desde 1922. Por se tratar da “fase final” de Kafka, como Modesto Carone a denomina, essa coletânea consegue preservar, na minha opinião, delicadeza e violência de uma forma que desafia qualquer compreensão simples.
As quatro peças não estão organizadas de forma aleatória. A primeira e a terceira tratam de artistas: do trapézio e da fome, respectivamente. Assim, temos simultaneamente os dois lados da moeda: 1) o artista do trapézio prefigura o artista da fome, ou melhor: apenas o tem em seu horizonte, no que sua história é mais curta e apenas vislumbra um desfecho; e 2) o artista da fome é a figura do artista do trapézio, no sentido utilizado por Auerbach, de que aquele “completa”, “preenche” este[1].
A distância entre um artista e outro serve para criar a tensão, que é suspensa pela segunda novela. Isso é ainda mais claro se notarmos que a extensão das peças é crescente. Dá-se, com isso, uma sensação de retomada, e isso permite ao autor sobrepor camadas de sentido sem eliminá-las. Façamos, portanto, o percurso que o próprio autor sugere.
A fragilidade da ordem
O primeiro texto trata de um artista de trapézio que nos é apresentado como tão comprometido com sua arte que a faz medida de sua vida fora da barra – o que, já de entrada, é uma inverdade, pois essa vida nem chega a existir, tal o grau de comprometimento.
O empresário do trapezista não pensa apenas em lucro. Ele está totalmente disposto a fazer concessões ao artista para que ele viva e performe melhor. Mas é exatamente isso que torna o trapezista um coitado. O narrador onisciente invoca empatia pelo artista por meio do empresário: “Por mais bem-sucedidas que essas viagens fossem para o empresário, cada nova excursão lhe era penosa, pois a despeito de tudo perturbavam seriamente os nervos do trapezista” (p. 11).
Uma entrada neste texto é, na minha opinião, o lugar onde o dito esconde seu oposto: quando o trapezista exige mais uma barra para seu número – pois “‘Só com essa barra na mão, como é que posso viver?’” (p. 12) – é exatamente a prontidão do empresário que lhe é insuportável e lhe fará chorar; é essa prontidão que expõe a fragilidade do artista: “Mas, como se estivesse querendo mostrar que a anuência do empresário tinha aqui tão pouco sentido quanto a sua negação, o artista acrescentou que nunca mais e em circunstância alguma trabalharia com apenas um trapézio” (p. 11). A esta altura, é exatamente a luta contra ninguém que caracteriza o artista do trapézio. É, na verdade, a sua insistência que “tinha aqui tão pouco sentido quando sua indiferença”. Infelizmente, a arte não salva. Aos poucos, Kafka vai tirando o pouco que os artistas possuem.
Um feitiço real
No segundo conto, “Uma mulher pequena”, o tom já é outro, em vários sentidos, a começar pelo narrador. Primeira e terceira peças são narradas em terceira pessoa, segunda e quarta, em primeira. Apenas em primeira pessoa e com estes argumentos Kafka conseguiria levar a outro plano um dos seus temas recorrentes: nascemos pecadores. Mas, neste caso, não se trata de uma imagem religiosa, não se trata da Lei, não se trata de um pai rigoroso – em certos sentidos, veremos em seguida, não se trata de nada.
A mulher pequena escolhe o narrador como bode expiatório para suas questões pessoais. O narrador diz: “Não há nenhuma relação entre nós que pudesse forçá-la a sofrer por minha causa. Ela só teria que se decidir a me ver como alguém completamente estranho, o que aliás sou” (p. 14)[2]. O tema de nascer pecador – ou, neste caso, inadequado, de ser uma afronta – surge de uma forma muito mais totalitária neste texto, pois é imposta por um indivíduo.
Uma das chaves interpretativas de Kafka é a de que ele estaria, com este tema, comentando o nazismo, durante o qual algumas populações foram denominadas como inferiores por uma ordem quase divina – estatal. O totalitarismo não é a violência que um ser humano comete sobre outro, ou o ódio que uma pessoa tem por outra. Isso ainda pertence a outro plano, que não é necessariamente político-ideológico. O totalitarismo é a violência como forma de governo; são a violência e o ódio instrumentalizados para destruir o inimigo. Por que, então, há neste conto mais totalitarismo do que em outros textos de Kafka em que a violência e a alienação têm face burocrática e estatal? Porque neste texto o narrador está acossado, ele teme o que acontecerá caso a insatisfação da mulher pequena venha à luz do povo. Por isso que para ele é melhor deixar as coisas quietas: ele teme o povo todo contra ele.
A mulher também prefere adoecer sem cura a admitir que uma existência tão irrelevante como a do narrador poderia ter efeito algo tão grande em sua ilustre pessoa. Ambos vivem uma guerra fria: “se realmente ficar conhecido que eu a deixo doente com o meu comportamento” as pessoas tomarão o lado da mulher pequena; “se o mundo me interpelar dessa maneira, vai ser difícil responder” (p. 16). Mas tão logo ele diz isso, já se desmente: “Não quero dizer que não acreditassem em mim; na realidade não acreditariam nem deixariam de acreditar; ninguém chegaria ao ponto de discutir sobre isso” (p. 17). Ele vê perigo em algo tão pequeno.
Aqui temos, no entanto, de nos decidir: 1) uma interpretação opta por crer no narrador, crer que ele foi escolhido por essa mulher pequena para ser motivo de todos seus próprios defeitos e insatisfações; 2) uma segunda interpretação, me parece, é não acreditar no que ele diz, mas compreender que ele próprio, à imagem que ele faz da mulher pequena, projeta tudo isso nela. Dessa hipótese temos alguns indícios, e o primeiro é o de que, efetivamente, nada acontece. Ele próprio admite: a relação não existe e, portanto, poderia ser imaginação dele ou/e dela. O maior argumento, no entanto – e que é um eco kafkiano que ressoa aqui – é o fato de que não apenas a mulher pequena escolheu o narrador, mas ele também, de certa forma, a escolheu: “[…] essa mulherzinha doente, recém-aportada à minha vida, a quem, diga-se de passagem, um outro que não eu talvez tivesse há muito identificado como carrapicho e esmagado debaixo da bota, sem fazer ruído para ninguém” (p. 21). Apenas ele deixaria a situação chegar a este estado. A culpa que a mulher pequena impõe no narrador é para ele e apenas ele recolher. A sua personalidade é tal que nenhuma outra relação poderia ter surgido entre os dois, e esta situação que eles preservam é, de certa forma, incontornável.
“A insatisfação dela comigo, como agora eu entendo, é uma questão de princípio; nada pode suplantá-la, nem mesmo a supressão de minha pessoa; a notícia do meu suicídio, por exemplo, provocaria nela acessos de fúria sem limites” (p. 18). O totalitarismo está em decidir pelo outro, torná-lo objeto. Isso será retomado em “Josefina”.
Isto é, em Kafka, a mentira tem efeito de verdade. Aliás, a única decisão impossível é a supressão de um dos elementos, pois senão o sadismo dos dois inimigos não seria satisfeito, devido à inverdade/ausência de sua relação. Por isso o leitor não vê o narrador, que se denuncia, tornar-se, através disso, um mentiroso propriamente dito, mas apenas se adiciona mais absurdo à sua situação (mais camadas) – e retomaremos isso, novamente, em “Josefina”.
Impossível incontornável
Este conto, “Um artista da fome”, começa retomando as rugas do artista do trapézio, ao evocar a queda no interesse pelos artistas da fome nos tempos atuais. A narrativa começa no “Antigamente” – e lá fica um bom tempo – e começa, portanto, mesmo que ainda não sintamos, no anticlímax. O narrador (novamente, em terceira pessoa) fala de um tempo em que havia deslumbramento em relação aos artistas da fome: o assombro (das crianças, por exemplo, não sua incompreensão) explicava o interesse. O artista como coitado é retomado quando se descreve o teatro que fazem quando se acabam os quarenta dias de jejum e o artista é exibido para impressionar o povo. Da mesma forma, é retomado também o bom empresário, só que aqui sua anuência com as questões do artista tem uma face cínica, e chegam a infantilizá-lo.
O conto expõe as dores de uma pessoa para quem a arte é quase orgânica, ou seja, não é propriamente arte. Novamente, assim como a religião o é às vezes, a arte pode ser aqui lida como imagem para algo maior. Uma pergunta que será ressignificada ao final do conto, mas que já vem sendo justaposta à felicidade dos novos tempos, em comparação aos passados, é a que o artista da fome se faz: “Se ele aguentava continuar jejuando, por que ela [a multidão] não suportava isso?” (p. 27). A manutenção da técnica lhe é insuportável.
Então, na segunda metade do conto[3], como que arrancados de um sonho, vemos se dar início ao presente da ação, no qual o artista trabalha em um circo. Os perrengues pelos quais o artista passa poderiam ser comparados com as aventuras do Vagabundo em O circo, de Chaplin. Neste, o que preserva a pureza da arte é a incapacidade do empresário de enquadrá-la em números de apresentações. Já no caso do artista da fome, é a negligência do sistema e da burocracia artísticos que funcionam como salvação e danação simultaneamente.
A maior violência que se comete contra o artista da fome é uma inversão, o absurdo de sugerir que seu mau humor advenha do jejum e não do seu término: “O que era consequência do encerramento prematuro do jejum se apresentava aqui como sua causa! Era impossível lutar contra essa incompreensão, contra esse mundo de insensatez” (p. 30, itálico meu). O empresário projeta no artista uma explicação que funciona (e, neste sentido, este conto também ecoa o último desta sequência).
No momento em que os números e o desempenho do artista da fome são fraudados, no momento em que o esquecem, é então que ele consegue se superar. Vale lembrar, aqui, que a arte do jejum não foi escolhida à toa; ela figura como a arte que leva, em sua própria definição, à aniquilação do indivíduo. É no jejum que o artista testa os limites do possível e do impossível – e novamente vemos algo se tornar imagem de algo maior. O conto, como todo, recusa análise, parece, pois não consegue conceber artista sem público: tanto sua relação atual como sua anterior, ambas são impossíveis e incontornáveis.
Por fim o artista morre – na palha como um personagem bíblico – um mártir em defesa de nada, como o objeto frágil e descartável sobre o qual jaz, e é substituído por algo que é, em si próprio, o absoluto, a arte orgânica e perfeita sem técnica. O desfecho com a pantera retoma a necessidade de jejuar do artista: ela não era tão fisiológica quanto humana. Ele pode nunca ter encontrado nada que lhe desse fome, mas ele não carece dessa necessidade básica.
A mentira dói como a verdade
Para entrarmos na quarta peça, voltemos à segunda, onde o narrador expõe: “Não tem nada a ver com o sentido real da coisa o fato de que com os anos eu me tornei um pouco inquieto; é que simplesmente ninguém suporta irritar quem quer que seja de modo contínuo, mesmo que se reconheça a falta de fundamento da irritação” (p. 22).
Com isso retomamos a questão de que, em Kafka, a inverdade tem efeito de verdade, mas mais especificamente neste último conto, nota-se o narrador se desmentindo e oferecendo uma explicação que não é válida: está claro que é por causa de sua relação com a mulher pequena que ele se tornou inquieto, e ele é o primeiro a admitir (e em seguida, negar).
Já entrando no texto “Josefina”, lembramos da citação anterior de Günther Anders. Várias características desse “povo” ressaltadas pelo narrador evocam os judeus, como a “esperteza prática” (p. 37), a sugestão de serem perseguidos há tempos, o fato de que parece que agem como povo[4]. Este conto também retoma temas anteriores, como a condescendência em relação ao artista, especialmente no “martírio” da protagonista: o esforço que fazem para preservar a aparente ilusão de que Josefina é uma cantora singular. Este conto conjuga o comprometimento artístico com uma espécie de autoritarismo: a crença e arrogância de Josefina controlam todo um povo – não se esquecendo, no entanto, que eles precisam dela tanto quanto ela deles: essa relação é impossível e incontornável.
Sobre o canto de Josefina, o narrador, a uma certa semelhança com o de “Uma mulher pequena”, vai discorrendo e se desmentindo sobre o caráter real desse canto. Ele é comum e extraordinário; não se sente efetivamente nada ao ouvi-lo, e ao mesmo tempo surte enorme efeito no ouvinte; às vezes não é um assobio porque é mais que isso, às vezes porque é menos, e, por fim, o canto é algo que apenas em Josefina este povo pode apreciar: sem ela não há nada. Ela serve, portanto, como um receptáculo das expectativas do povo dos camundongos.
Mas para além de identificar as contradições – difícil aliás dizer algo que não possa ser desmentido pelo próprio texto – e mudanças de humor em Josefina, é interessante focar aqui em algo que raramente surge sob a lupa dos críticos: a relação entre o texto e o título.
“O povo dos camundongos” pode ser lido, defendo, como mais uma das projeções que um narrador impõe a uma personagem. A narrativa flerta com a caracterização desse povo como camundongos, mas em nenhum momento isso é confirmado. O que se sugere com isso é que o termo “camundongos” serve apenas como uma cifra, digamos, como uma carapuça com a qual o narrador veste seu objeto de análise, isto é, a personagem, e à revelia desta. Soa como um apelido, que nem precisa ser contestado, pois não é verdade. O que faz com que o narrador diga algo e se desminta é, afinal, o fato de que ele está simplesmente tentando acompanhar a promessa que fez no título: ele não consegue provar seja que o grito de Josefina é de fato um canto ou um assobio, mas também não aceita a possibilidade de que não é. É este o centro do meu argumento.
Voltemos, então. Na Metamorfose, Gregor Samsa acorda certa manhã como um bicho horrendo. O que autores já chamaram de “surreal”, “nonsense”, “absurdo”; o estranhamento do texto é exatamente que ninguém estranha que Gregor tenha se tornado um inseto – e isso Anders fala em seu livro; o estranhamento surge do fato de que a primeira coisa que vem à mente da família não é “o que aconteceu?”, mas “então como Gregor vai trabalhar?”. Porém, de alguma forma, mesmo que mesquinha, esta violência que os Samsa infligem em Gregor tem alguma justificativa. Na narrativa, é fato que o protagonista se transforma em um inseto – ele anda pelo teto e pelas paredes! –, e não é possível que a vida de uma pequena família não mude após isso. Porém, o que torna “Josefina, a cantora ou O povo dos camundongos” um texto que trata muito mais radicalmente do totalitarismo é o fato de que, aqui, não é preciso que nenhuma transformação ocorra para que o interlocutor mude sua postura. Não é preciso que Gregor vire inseto, não é preciso que Josefina e seu povo sejam de fato camundongos, para que o interlocutor – e todo o mundo – os veja como camundongos.
No topo desta montanha incontornável e belíssima que é esta obra Um artista da fome, temos um texto que silenciosamente e sem vulgaridade, condenação ou denúncia expõe a alma do totalitarismo. Um indivíduo projeta no seu interlocutor a ideia que faz dele e dessa forma não consegue nem ao menos se aproximar dele – não consegue sair de si mesmo, na verdade. Por isso, apenas numa narrativa em primeira pessoa Kafka alcançou essa proeza (e não de todo em A metamorfose, por exemplo)[5].
Em um momento político de falta de ideias e de argumentos, em que lados não conseguem se sentar para definir um objeto de debate, e no qual interlocutores já possuem “o olhar inquisidor que já conhece o resultado antes do exame” (p. 18, “Uma pequena mulher”), essa obra alenta nossas aflições e ansiedades. Não há tentativa de debate e isso parece ter se tornado um valor. Hoje, a maior barbaridade está na linguagem.
No mundo em decadência, a palavra que nomeia se torna a palavra que mente, que é usada como cifra, deliberadamente enganosa. O indivíduo faz de seu interlocutor um objeto. Aliena-lhe a liberdade de se autonomear. A verdade de um indivíduo, uma vez que é autoritária, tem efeito de verdade: quando alguém exerce uma violência em outra pessoa, a vítima deixa de ser humana, passa a ser um objeto, pelo menos do ponto de vista do agressor; e isso basta.
O povo dos camundongos, do qual Josefina faz parte, também sente isso. De alguma forma nomeada – e, novamente, negada – o canto de Josefina faz mais sentido em tempos sombrios. Ao mesmo tempo, ela e seu povo se recusam a instrumentalizar sua arte. Dos escombros do narrador, o leitor atento pode vislumbrar alguém acossado, quieto, esfomeado na palha, que insiste em ser humanizado. Isso, no entanto, não chega a ser performado no conto, o que preserva a alienação de narrador, personagens e, muitas vezes, leitor.
Abrigo
A projeção de uma mentira serve, nos contos acima, e especialmente no último, tanto como alienação como abrigo dos indivíduos. Na verdade, até mesmo o narrador odiado e odioso é acossado: pode ser que ele esteja simplesmente imaginando a opressão que sofre (e à qual responde com mais violência), e isso mostra quão mais grave é a sua alienação; sua ferida pode jazer mais fundo. Na intercalação dos textos dessa obra-prima, a alienação é o denominador comum e surge de maneira tão mais violenta quanto mais misteriosos e desafiadores à interpretação são os textos de Kafka.
Novamente, o fascismo não está no ódio de chamar alguém de “camundongo”; mas esse ato gera em nosso âmago um medo de que essa violência possa ser instrumentalizada. Assim como o narrador de “Uma mulher pequena”, esperamos para ver se o totalitarismo capitalizará sobre esse ódio.
*Gustavo Cangello de Carvalho Rocha é bacharelado e licenciado em Letras: Português/Alemão pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Atua desde 2016 como professor de alemão.
Referências
ANDERS, Günther. Kafka: pró e contra – os autos do processo. São Paulo: Perspectiva, 1969.
AUERBACH, Erich. Mimesis – a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2011.
KAFKA, Franz. Um artista da fome. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
[1] A citação é da página 63 do Mimesis: “Quando, por exemplo, um acontecimento como o do sacrifício de Isaac, é interpretado como uma prefiguração do sacrifício de Cristo, de maneira que no primeiro, por assim dizer, anuncia-se e promete-se o segundo, e o segundo ‘cumpre’ o primeiro – figuram implere é a expressão para isso –, cria-se uma relação entre os dois acontecimentos que não estão unidos nem temporal, nem causalmente – uma relação impossível de ser estabelecida de forma racional e numa dimensão horizontal, se for permissível esta expressão para uma extensão temporal. Só é possível estabelecer esta relação quando se unem os dois acontecimentos, verticalmente, com a providência divina, que é a única que pode planejar a história desta maneira e a única que pode fornecer a chave para a sua compreensão”.
[2] No original: “Es besteht ja gar keine Beziehung zwischen uns, die sie zwingen würde, durch mich zu leiden. Sie müßte sich nur entschließen, mich als völlig Fremden anzusehn, der ich ja auch bin”. Na tradução, este “o que aliás eu sou” vibra de forma bem patética, pois ele argumenta (com o uso do “aliás”) como se o que ele tivesse dito logo antes fosse uma contraposição do que ele diz neste último adendo. Não é, mas ele repete pois já interiorizou a incontornabilidade da situação. Já no original, “ja”, que por sua vez aparece logo no início da frase (“Es besteht ja gar keine Beziehung…”, ausente na tradução) poderia também ser traduzido por “de fato”.
[3] Essa divisão pode ser feita, assim me parece, tanto a partir de “Assim viveu muitos anos” (p. 29) como “Um grande circo” (p. 31).
[4] “Para reunir em torno de si esta multidão do nosso povo […] Josefina não precisa, na maior parte das vezes, fazer outra coisa senão, com a cabecinha atirada para trás, a boca semiaberta, os olhos voltados para o alto, assumir a posição que indica a intenção de cantar […] A notícia de que vai cantar se espalha depressa e logo desfilam as procissões” (p. 43 de “Josefina, a cantora ou O povo dos camundongos”).
[5] Permitirão me exceder um pouco e notar como no início do conto “Uma mulher pequena” o narrador se dispõe a descrever os dedos da mulher. Ao mesmo tempo em que eles são curiosamente afastados uns dos outros, sua mão não tem nada de anatomicamente peculiar. Não vejo sentido desse comentário, a não ser admitir o exagero de que isso prefigura o tema do corpo que estará presente de maneira mais intensa (embora silenciosa) em “Josefina”. Ora, a descrição serve não apenas para retomar inconsistências dos narradores mas para permitir ao leitor vislumbrar a verdade por trás das mentiras que eles contam: trata-se de uma mão ou uma patinha?