Sobre futebol, mas não apenas

Em primeiro plano, uma grade. Em segundo plano, um capo de futebol sem ninguém e uma bola.
Foto: ©Андрей Гаврилюк on Unsplash

por Ana Paula Girardi*


— Ouvindo agora você contar isso, você já pensou se gosta de futebol porque desde muito novinha queria ocupar os espaços reservados só para os meninos?

Até ouvir essa pergunta da minha analista, eu não tinha conscientemente refletido sobre minha relação com o futebol. E uma das coisas que eu mais adoro em estar num processo de análise é justamente como as pecinhas e pedacinhos de tudo que compõem esse meu eu e essa minha vida vão se juntando assim aos pouquinhos.

Ao longo de março eu li com alguma frequência sobre futebol, desde o meio do ano passado mais ou menos eu tenho visto cada vez mais jogos, e as últimas semanas na análise estão bastante dedicadas a pensar algumas posturas minhas digamos que mais “combativas” e como me relaciono com minha força e minhas fragilidades.

Tudo isso teria andado paralelamente não fosse uma conversa sobre futebol que culminou na pergunta: por que as mulheres foram deixando de frequentar estádios? Como sou inquieta, fui atrás de pesquisar artigos sobre a presença feminina no futebol brasileiro.

Até que na última sessão de análise a pergunta anterior ganhou uma perspectiva pessoal: por que eu fui de uma menina que jogava bola com os garotos, que assistia aos jogos, para uma adolescente longe do futebol? Por que só na faculdade eu fui timidamente voltando a me relacionar com o futebol e só agora, depois dos trinta, o futebol voltou a figurar entre os meus interesses? Vamos a duas anedotas.

A primeira delas é sobre o “isso” da pergunta da minha analista. Eu tinha por volta de dez anos, estava jogando futebol na quadra de areia do clube que minha família frequentava. Até que numa disputa de bola com meu irmão, ele ficou irritado com eu o ter driblado e me empurrou. Caí, ralei o joelho, levantei xingando munida do meu amplo repertório de palavrões e, em meio à discussão se tinha ou não sido jogo de corpo, resolvi que queria ferrar com ele: fui reclamar com meu pai. Ouvi do meu pai: “também, você, menina, querendo jogar bola? vai brincar no parquinho que é melhor”. Fiquei ainda mais revoltada, saí praguejando, lavei o joelho e voltei para a quadra reivindicar meu lugar no jogo.

A segunda anedota foi uma das últimas vezes que joguei futebol. Devia ter por volta de 12 anos, nessa época os meninos começaram a questionar ter que jogar em times mistos. Alguns não ligavam, outros deixavam para lá, mas nunca era simples apenas entrar na quadra e jogar bola. Eu estava numa fase que gostava de ficar no gol. Por mais surpreendente que pareça hoje para mim mesma, eu não tinha nenhum medo de ir para a bola e pular para defender.

Um moleque em específico não queria de jeito nenhum que eu jogasse, muito menos no gol. Ouvi que comigo no gol seria o mesmo que não ter ninguém, que eles não iam poder chutar de verdade, que se a bola batesse no meu peito eu ia chorar etc. De saco cheio, eu disse: “você e eu, você bate um pênalti, se eu pegar eu jogo, se eu não pegar eu fico quieta”. Ele aceitou, eu defendi a cobrança dele. Entre os outros meninos gritando e zoando, ele tentou desqualificar a defesa, disse que não chutou de verdade, pediu para bater de novo. Eu aceitei que ele batesse de novo, mas dessa vez não consegui chegar a tempo na bola. Tudo bem, meu ponto estava mais do que provado, o papelão foi todo dele e ninguém mais se opôs a eu jogar e ser goleira.

A minha memória para algumas coisas não é muito boa. Eu me confundo, troco ou esqueço nomes de personalidades importantes, às vezes misturo datas, isso não deveria ser uma questão porque não atrapalha o meu dia a dia ou meus afazeres. Mas começou a ser um problema quando eu conversava sobre futebol. O fato de que eu não conseguia guardar o nome de alguns jogadores do meu Palmeiras, por exemplo, ou simplesmente esquecer o nome do técnico anterior era usado pelos meninos para me desqualificar nas conversas, não importando o conteúdo do que eu dizia.

Com o tempo foi perdendo o sentido brigar tanto para estar nesses espaços, meus interesses foram se diversificando e a adolescência me trouxe tantas outras questões mais urgentes. Só fui voltar a me relacionar com o futebol bem mais velha, e por causa dos meus amigos próximos que gostam e que não têm uma questão em me ter no grupo conversando sobre futebol e vendo jogos. Dentre as minhas amigas, apenas uma realmente acompanha os campeonatos e frequenta estádios com regularidade.

Eu considero a afirmação “o pessoal é político” um tanto delicada porque ela comumente é lida como “o individual é político”, apartando o indivíduo e sua subjetividade do contexto material que o transpassa. Como se os indivíduos não fossem também resultado das relações de classe, de raça e de gênero, como se fosse possível trazer à tona a experiência individual sem tecer e chegar à raiz dessas relações. Apenas dentro de uma perspectiva materialista dialética é possível afirmar que o pessoal é político.

Com isso em mente, eu volto à minha conversa sobre as mulheres deixando de frequentar estádios ao longo das décadas e ao resultado do que andei pesquisando. Ainda que minha experiência pessoal me mostrasse algumas possíveis respostas, ou trouxesse à tona questões pertinentes, não me parecia suficiente para responder meu questionamento. E se algo fica cada vez mais claro para mim com minhas pesquisas sobre gênero, gênero e literatura, gênero e arte é que a presença (ou ausência) de mulheres nas diversas áreas e sua desvalorização é uma injunção política socialmente construída. Não poderia ser diferente com o futebol.

Acredito que o primeiro fato a se lembrar é justamente em qual espaço as mulheres circulavam no início do século XX quando os primeiros times de futebol surgiram no brasil. Presas aos papéis relacionados ao lar e à manutenção da vida, o espaço público não lhes era completamente permitido. No livro O Negro no Futebol Brasileiro, Mário Filho nos conta de que forma as arquibancadas dos primeiros clubes eram ocupadas pelas diversas classes sociais. E o que eu gostaria de ressaltar aqui, vindo do texto dele, é como as mocinhas da sociedade acompanhavam suas famílias nos jogos como se fosse um baile, como os rapazes e jogadores (naquele momento filhos da elite) iam flertar e cortejar essas moças. Ir ao estádio era um evento social como outro qualquer, e a presença feminina ali era bem-vinda por embelezar a arquibancada e trazer esse caráter mais refinado dos salões e bailes.

Guardadas as devidas proporções e diferenças históricas, me parece que nem tudo mudou completamente ao observar como os clubes ainda hoje tratam as mulheres que frequentam os estádios apenas como namoradas, esposas, irmãs ou mães que acompanham os verdadeiros torcedores, os homens. Escolhendo os rostos femininos mais jovens e dentro dos padrões de beleza para estampar os telões com imagens da torcida.

Mas voltando ainda ao passado, a paixão pelo futebol não passou incólume ao meio feminino. Ainda que timidamente, não tardou tanto assim para as mulheres começarem a jogar. O que teria acontecido então para chegarmos hoje com tão poucos times femininos, com, de modo geral, as mulheres tão desinteressadas e desestimuladas a jogar e acompanhar futebol?

Se ao longo dos séculos a sociedade burguesa controlou as mulheres à força da violência, dos costumes e da lei, não me surpreendeu descobrir que no Brasil durante a ditadura vargas o futebol feminino (e outros esportes) foi proibido[1]. E que a ditadura militar retomou essa proibição[2], o que fez, inclusive, com que clubes que tinham times femininos os extinguissem. O argumento utilizado, que também não surpreende, é que o corpo feminino é mais frágil e feito para gerar vida. o futebol seria um esporte que mudaria a constituição física da mulher, colocando em risco sua saúde, sua beleza e sua função reprodutiva.

Décadas depois, com a regulamentação do futebol feminino em 1983, os reflexos negativos dessas proibições permanecem na sociedade brasileira e seus costumes. Não à toa ouvi que choraria se chutassem a bola no meu peito, que não teria coragem de pular para defender o gol, que meu lugar era no parquinho com as outras meninas.

Os espaços predominantemente masculinos são hostis às mulheres. A lei as apartou do futebol ao longo da história recente do nosso país. Os grandes clubes só passaram a ter times femininos este ano e por exigência da conmebol para poder disputar a Copa Libertadores da América com as equipes masculinas, porém esses clubes não investem além do mínimo exigido em estrutura e nas categorias femininas. O lugar da mulher na arquibancada não é como torcedora, é entre as belas da torcida, larissas riquelmes e afins. A presença feminina dentre a comissão técnica, como árbitras ou árbitras auxiliares, não nos admira, é ínfima. Com essa combinação de fatores que se retroalimenta, não é mais tão difícil assim entender o porquê de entre tantas amigas que eu tenho apenas uma assistir aos jogos e frequentar estádios regularmente. Nenhuma delas joga futebol.

Há algumas sessões minha analista me disse “tudo em você ganha uma dimensão política muito forte”. Eu respondi, e sigo respondendo: é que tudo é político.

*Ana Paula Girardi é graduada em Letras pela Universidade de São Paulo e editora de material didático. E-mail:anapaulacgirardi@gmail.com.

[1] Ver mais em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-01882005000200012&script=sci_arttext. Acesso em: ago. 2019.

[2] Ver mais em: http://www.fg2013.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/20/1385576793_ARQUIVO_GiovanaCapucimeSilva.pdf. Acesso em: ago. 2019.

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