Foto: by Griffin Wooldridge on Unsplash
por Ana Paula Girardi*
Quando em meados de dezembro do ano passado o mundo teve notícias de um novo coronavírus que se alastrava e fazia vítimas na China, não imaginávamos o impacto que isso teria na economia mundial e nas nossas vidas seis meses depois.
Ao longo desse tempo, vimos o vírus atravessar fronteiras, parar países inteiros e reduzir pessoas a números de mortos e infectados. Enquanto circulavam as imagens dos italianos isolados em suas varandas cantando para seus vizinhos, aqui, aguardávamos respostas e orientações das autoridades do poder público.
A produção parou. O comércio fechou suas portas. Quem podia se isolar, se isolou. Nesse movimento, setores da produção foram paralisados e outros tiveram seu ritmo reduzido, mas os trabalhos considerados essenciais não podiam parar.
Na disputa das empresas em enquadrar seus serviços como essenciais e seguir seu ritmo de produção, a despeito da saúde e segurança dos trabalhadores, os países em que houve de fato um lockdown mantiveram apenas os serviços essenciais de alimentação, saúde, limpeza, segurança e bancos funcionando. Em resumo, serviços essenciais para a manutenção da vida, e, claro, da força de trabalho, e serviços essenciais para a manutenção direta do sistema.
Nos primeiros meses de isolamento social, os lares das classes média e média alta brasileira tiveram suas rotinas alteradas. As crianças passaram a ter aulas virtuais, enquanto os pais viram sua jornada de trabalho transformada em trabalho remoto. Com o isolamento das famílias, as refeições e a limpeza já não podiam ficar a cargo de uma empregada doméstica.
O trabalho doméstico passou a ocupar parte considerável do dia das mulheres de classe média, disputando espaço com o trabalho remoto. Tornou-se comum aproveitar para estender a roupa enquanto o computador reinicia, ouvir um choro de criança durante uma videochamada, aproveitar que aquele e-mail não chegou e colocar o arroz para cozinhar. Comum, claro, na rotina das equipes com trabalhadoras mulheres, que, em um acordo tácito, também agendam as reuniões para depois do almoço das crianças. Os colegas homens seguem sua jornada de trabalho sem grandes percalços.
Já na academia, se a produção dos pesquisadores homens sofreu um impacto com o isolamento social, a das pesquisadoras mulheres despencou. Responsáveis pelos cuidados da casa e educação dos filhos, a falta de apoio e a divisão dessas tarefas incidiu diretamente no tempo dedicado à pesquisa e à produção de artigos. Não é uma mera coincidência que, nos currículos lattes de acadêmicas mulheres, os períodos sem publicações correspondem à gravidez e a primeira infância de seus filhos, não seria diferente durante a pandemia.
Nos lares da periferia, as desigualdades desse sistema mostram sua face mais cruel. Sem empregos, ou com salários reduzidos, e sem o auxílio emergencial do Estado, a classe trabalhadora mais vulnerável é levada a escolher entre morrer de fome ou enfrentar o risco de ser infectada. São os jovens negros em suas bicicletas que se arriscam como entregadores dos serviços de delivery, são as mulheres negras que deixam suas casas e filhos para cuidar da limpeza dos lares da classe alta. Não à toa, o número de contágio nos bairros de periferia é cada vez maior, assim como a diferença no número de pessoas negras mortas vítimas da covid-19 é maior do que o de pessoas brancas.
Se as mulheres da classe trabalhadora vivenciam a exploração capitalista de maneiras distintas segundo sua raça, a opressão de gênero guarda em comum entre todas o trabalho de reprodução da vida. Se esse trabalho será feito pela mulher branca de classe média, ou por sua empregada doméstica negra, de todos os modos, é um trabalho atribuído à mulher.
O Estado se exime desses cuidados, relegando-os à esfera privada, e o patrão, em busca de lucros cada vez maiores, compreende que o salário é aquela quantia do valor produzido necessária para o trabalhador acessar o mínimo para sua sobrevivência. Nessa conta, o trabalho de gestação do novo trabalhador e a sua educação – o trabalho de preparar os alimentos da família, os cuidados com a limpeza, com a saúde dos mais velhos – são relegados às mulheres, como algo inato ao instinto maternal feminino. Essa ideologia machista, que naturaliza o trabalho doméstico como cuidado e não como trabalho, desvincula do salário a manutenção da reprodução da força de trabalho.
O novo coronavírus paralisou a produção, mas o trabalho de reprodução social da vida não cessa. Se antes da pandemia a desigualdade de gênero permeava todas as esferas da sociedade sob uma aparente normalidade, o impacto do isolamento social em uma sociedade estruturada na exploração e nas desigualdades escancarou todas essas fissuras.
Mais do que uma retomada da suposta normalidade da vida de antes da pandemia, é necessário buscar novas formas de produção e organização social. Formas que tragam uma resposta coletiva para o fim da exploração, de modo que as opressões também não tenham mais espaço.
*Ana Paula Girardi é graduada em Letras pela Universidade de São Paulo, editora de material didático e tradutora literária de espanhol.