Foto: by Alex Dukhanov on Unsplash
de Carmen de Burgos (Colombine)
traduzido por Ana Paula Girardi*
Maria, a moendeira, rejuvenescia cada dia mais desde a morte de seu marido.
As pessoas que iam levar sacos de trigo e buscar farinha, notavam como dia após dia a moendeira se arredondava e adquiria cor de maçã.
Seu casamento havia sido feliz: o marido, ainda que um pouco brusco e rude, sempre foi carinhoso, jamais faltou pão em casa e nem cobertor no inverno, a abundante moenda permitia viver bem da maquia.
Maria era então uma jovenzinha magricela, pálida, sem curvas e sem sal, quase uma menina desenvolvida, que sofria a pobreza orgânica das mulheres sujeitas à imoralidade da monogamia. Todos os anos um bebezinho nascia e outro morria. Sempre parindo e criando, entre o contínuo trabalho da casa, do curral ao moinho. Quando morreu seu Vicente, chorou com verdadeiro sentimento, não sabia dizer a si mesma se o amava, estava acostumada a ele e não havia querido a ninguém com amor de mulher.
Mas desde que o bom homem morreu, Maria começou a ser jovem, no descanso de uma existência tranquila. Se fechou no moinho com seus dois filhos para que ninguém tivesse o que falar sobre ela. Livrou os filhos do serviço militar: o mais velho havia casado há um ano, e ela já era a avó Maria.
***
Naquela noite, tinha acabado de soltar o cachorro no pátio e de passar as trancas nas portas do moinho e da casa, quando fortes batidas vieram perturbar o silêncio.
Aquele que chamava não era Frasquilho! Ela conhecia bem o modo de seu filho chamar. E, no entanto, deveria ser um conhecido porque o cachorro, que havia farejado, não ladrava.
Tirou o candil do gancho, de onde esfumava a parede, e foi até a porta. Aquele que chegava redobrou impacientemente as batidas.
— Quem é? — perguntou a moendeira.
— Sou eu, Pepe Manteca — respondeu uma voz mal-humorada. — Abra logo.
A mulher puxou para trás o malho de madeira e a tranca, o enorme portal rangeu sobre suas dobradiças, facilitando a entrada daquele que chamava.
Um homem alto, ossudo, de movimentos bruscos e aspecto arredio, penetrou na casa. Carregava uma grande vara de amendoeira na mão, e, por entre as pregas da faixa encarnada, se via o punho de uma faca e a culatra de um revólver.
Sem dar boa noite, sem olhar a moendeira, que o contemplava atônita, Manteca começou a percorrer a casa a passos largos, empunhando a vara em riste e perguntando sempre:
— Seu filho! Onde está seu filho?
— Meu Frasquinho? — perguntou por sua vez a mãe. — Por que procura meu Frasquinho?
O homem, sem escutá-la, entrou no quarto, depois no celeiro, logo no moinho. Inspecionou todas as partes, ao mesmo tempo que batia a vara nos sacos, espalhando o pó branco de farinha no ar.
— Onde está esse malandro, esse bandido, esse ladrão?
A moendeira o seguia, quase não respirando, com o candil na mão, vacilante e quase deixando-o cair, murmurando com a voz dolente:
— José, José! Por caridade! Me diga o que é que aconteceu com meu Frasquinho?
Parou diante dela o homenzarrão, jogou o chapéu para trás e mostrou suas feições francas, abertas, fortemente acentuadas e animadas então por uma expressão de raiva.
— O que aconteceu? —perguntou com ironia. — Por acaso você não sabe?
— Não, eu juro. — respondeu a pobre mulher, quase não respirando.
Olhou-a José com atenção, e, apesar de sua raiva, achou-a formosa. Nunca, nos muitos anos que se conheciam, a tinha visto assim!
O saiote, curto e desbotado, colava no corpo, deixando desenhar o quadril arredondado, descoberta uma perna e os pés desnudos, brancos e de forma irrepreensível. O corpete, desabotoado, mostrava uma garganta de mármore e uns braços fortes em baixo do xale mal colocado. Na cabeça, livre do pano que oculta as mulheres do campo de Níjar desde o momento que se casam, luzia um bosque de cabelos negros, emaranhados e belíssimos em sua rebeldia, caindo sobre uma carinha fresca de maçã.
Sem se dar conta, José suavizou a voz:
— Ah! Como não sabe? Esse vagabundo, esse vigarista, esse… de seu filho que me roubou minha Isabel!
Irritado novamente, voltava a vomitar injúrias e impropérios.
Fazia muitos anos que era viúvo, muitos. Não havia querido casar novamente por consagrar todo seu cuidado àquela menina. Ele era chalante, ia de povo em povo e de feira em feira, sempre entre ciganos, entre confusões, mas não lhe faltavam boas moedas de ouro. Sua filha era uma rainha, nenhuma tão bem cuidada como ela. Não havia mocinha que tivesse tantos vestidos nem xales de Manila: possuía-os em sua casa. Seu desejo era virgem, e o pai se via nela como em um espelho… E sua filha o tinha abandonado. Aquela noite, ao voltar para casa, a encontrou vazia. Era Frasquinho, Frasquinho, quem lhe roubou seu cravo disciplinado, mas ele se vingaria, o mataria… Os juramentos mais atrozes saíram de seus lábios contra o filho da pobre mulher, que o escutava tremendo.
— Acalme-se, José, acalme-se — ela dizia. — Não abriram nenhum livro, faremos o casamento em seguida, eu me encarrego de tudo. O moinho vai bem e não haverá de faltar pão para eles.
José não se resignava, não era o casamento da filha o que lhe inquietava. Acostumados estavam ali que os namorados se juntassem, sem escândalo de ninguém e sem dar de comer aos curas para que os abençoassem. Era a falta de mulher em casa, a necessidade de vê-la a seu lado, de não estar sozinho, o que lhe enfurecia. Por isso havia se oposto ao noivado e por isso mataria aquele que lhe tirou sua filha.
— Se não está aqui, o encontrarei na casa do irmão. Nada poderá livrá-lo…
Se dirigiu à porta. Tentou Maria detê-lo com seu corpo, e se pôs diante dele.
— Não o mate, José, não o mate — gemeu. — Tenha compaixão de nós.
E o abraçava com seus formosos braços desnudos, fazendo-o estremecer ao contato de sua carne.
Com uns cinquenta anos, alto, enxuto, o que se chama bom moço, José conservava os traços de uma beleza varonil no semblante, de olhos grandes e larga testa sombreada de cabelos grisalhos.
A mulherzinha, miúda, redonda, chegava apenas até sua barba e lhe fazia aspirar naquele abraço inocente todo o perfume de fêmea que rodeava sua cabeça.
Ele se desprendeu bruscamente e se dirigiu à porta. Um terror imenso agitou a mãe.
— Virgem de Carmen! Vai matar meu filho! — gemeu angustiada.
Deixou cair o candil no chão, meteu os pés em umas alpargatas, que não se dispôs a amarrar, e saiu para o campo atrás de José, se cobrindo com o surrado xalezinho, e repetindo entre soluços:
— José, José, por caridade! Pare! Não mate meu filho! José, José, por caridade…
Ele seguia impassivo, murmurando maldições e ameaças a cada tropeço do caminho.
O outro filho vivia longe, teriam de recorrer mais de uma légua.
Brilhava a lua em um céu claro, entre as estrelas pálidas, e um ambiente outonal envolvia o campo. Um panorama de sonho se desenhava ao longe; os objetos se marcavam com linhas fantásticas na sombra, que não era bastante densa para deixar de ver os matizes dos restolhos ceifados e das ervas nascentes.
Dormia o povoadinho aos pés do monte onde se erguia o moinho, cujas pás, paradas por falta de vento, tinham estendidas as velas para receber a brisa da manhã, com a ânsia da desposada que, envolta em véus brancos, espera o primeiro beijo de amor.
De vez em quando o ruído de um réptil arrastando, sobre as pedras, sua pele de escamas ou o distante latido de um cachorro interrompiam a doce música misteriosa dos campos.
E seguia José sua carreira com a vara na mão e as armas na faixa, sem fazer caso da pobre mulher, tropeçando nas pedras e nas fitas de suas alpargatas, o seguia sempre caindo e se levantando, enquanto murmurava com voz suplicante:
— José, José, por caridade, não mate meu filho!
Pouco a pouco o ódio ia entrando na alma dela. Se tivesse uma arma poderia matá-lo impunemente.
Contemplava sua figura destacando-se entre a luz da lua. Era um bom moço, isso sim, e até o achava simpático, mas naquele momento o mataria de boa vontade para livrar seu filho.
Ideias bem distintas agitavam José, sentia subir à cabeça um perfume feminino, que emanava da moendeira. Cada vez que a ouvia tropeçar nas pedras, recordava seus lindos pés brancos quase descalços, e se já a deixava segui-lo, suplicante, era pelo deleite de escutar a vozinha mimosa, repetindo: José, José!
Depois de tudo, diabos! A mulher tinha razão, se os garotos se amavam, tinham feito uma coisa muito natural… Mas sua casa sem mulher…
De repente José se deteve, como se visse escrita no ar uma ideia salvadora.
A moendeira continuava em sua prece.
— Escuta, Maria — ele disse deslumbrado pela brancura azulada que arrancava a lua às duras carnes de mármore. — Eu perdoaria seu filho, se você vier comigo. Faz falta uma mulher em minha casa. O moinho para os garotos, você para mim…
— O que diz, José? — perguntou desconcertada.
— Que te quero e me faz falta uma mulher em minha casa.
— Mas eu, José… minha idade… meus filhos… Como pode perder assim a vergonha?
— Bem, bem, não te forço, mas a esse pilantra que roubou minha filha!
Brandiu ameaçador a vara, e virando as costas seguiu seu caminho.
Continuou Maria atrás de suas pegadas, e entre seu pranto fez a observação de que o chalante era um bom moço, jovem ainda, quase lhe parecia que tinha razão em se enfadar assim pelo abandono da filha.
— José, José! — chamou.
— O que quer?
— Tenha compaixão… se é preciso… eu irei contigo.
— Bom, os meninos fazem seu gosto e nós o nosso. Troco filha pela mãe!
Se aproximou da pobre mulher e a apertou em seus braços, gemeu ela inclinando a cabeça, e a boca do chalante buscou seus lábios vermelhos. Suspirou Maria um beijo de submissão de fêmea resignada à dupla cadeia da força do macho e de seus próprios desejos.
A lua foi a lâmpada que iluminou com sua luz branca desde a abóbada azul aquele leito nupcial de erva e terra.
*Ana Paula Girardi é graduada em Letras pela Universidade de São Paulo, editora de material didático e tradutora literária de espanhol.
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Na Aluvião 5, publicamos um texto sobre a Colombine: https://www.revistaaluviao.com.br/a-esposa-e-a-recorrencia/