por Lucas Viotto*
Fotografia em destaque: Gil Scott Heron, 2 de outubro de 2009, em São Francisco, Califórnia, por Adam Turner.
Gil Scott Heron nasceu em Chicago, em 1949, e morreu em Nova York, em 2011. Gravou a faixa mais famosa de sua discografia, que lhe renderia o apelido de “padrinho” do rap – nome que sempre refutou –, em 1970. Essa canção também iria fazer parte, mais tarde, de diversos movimentos sociais e seria escrita em cartazes de inúmeras manifestações por igualdade racial.
“The Revolution will not be televised” foi lançada em seu primeiro LP, Small Talk at 125th and Lenox, cujo nome é um importante cruzamento no bairro do Harlem, em Nova York, local de encontros de pessoas predominantemente negras e pobres. O álbum é um dos retratos mais crus e intensos da condição dos negros nos Estados Unidos no início da década de 1970. Hoje, o endereço que deu inspiração ao artista tem outro nome: Boulevard Martin Luther King com Boulevard Malcom X.
Heron ataca empresas, comerciais, personagens de desenhos animados, atores famosos, celebridades e sobra até para Johnny Cash.
A letra da música “The Revolution will not be televised” tem estilo spoken poetry (palavra falada). Nela, Heron é acompanhado apenas por uma linha de baixo, na pegada funk, e percussão, enquanto utiliza ironia para atacar os apáticos, aqueles que são hipnotizados pelos produtos culturais de cunho consumista, produzidos pela televisão estadunidense e promovidos pelo estabilshment. Heron ataca empresas, comerciais, personagens de desenhos animados, atores famosos, celebridades e sobra até para Johnny Cash.
Quando perguntado, mais tarde, sobre do que se tratava a música, Heron disse: “a primeira mudança acontece em sua mente; você precisa mudar sua mente antes de mudar o jeito que você vive. Quando eu dizia que a revolução não seria televisionada, queria dizer que alguma coisa iria mudar as pessoas, algo que ninguém seria capaz de gravar em vídeo. Seria algo que as pessoas iriam conseguir enxergar, e perceber que havia alguma coisa errada. Que talvez estaríamos fora de sintonia e que é preciso estar em sintonia para entender o que está acontecendo neste país”.
Gil Scott Heron veio de uma família excêntrica. Filho de Gil Heron, um jamaicano e jogador de futebol – o primeiro negro a jogar no clube escocês Celtic FC, de Glasgow –, e de uma bibliotecária e excelente cantora, Bobbie Scott. Devido à profissão itinerante de seu pai, Heron viveu em diferentes cidades americanas, inclusive em Lincoln, no estado do Tennessee, onde residia sua avó Lily Scott. Esta cidade era muito marcada pela música e por sua história de ativismo pelos direitos civis. A influência do lugar e de sua avó, somadas ao preconceito que sofria na escola contribuíram para as letras que Heron viria a compor.
Em sua rica discografia, é possível achar diversas músicas de cunho social, como nas faixas: “Johannesburg”, na qual ele denunciava o apartheid, que era encoberto pela grande mídia estadunidense; “We almost Lost Detroit”, que falava sobre os perigos do uso de energia nuclear; “Angola, Louisiana”, uma das mais pesadas letras já escritas, que retratava uma das unidades prisionais de segurança máxima dos Estados Unidos e que detinha o recorde de criminosos condenados à pena de morte.
Na música de “Angola, Louisiana”, composta em parceria com o tecladista Brian Jackson, é contada a estória do adolescente negro Gary Tyler, de 13 anos, encarcerado na prisão de Angola, como é chamada a Penitenciária Estadual de Louisiana, acusado de matar um garoto branco, também de 13 anos, durante um protesto, em 1975.
Nenhuma arma foi encontrada na cena do crime, e muitos afirmam que Tyler foi espancado pela polícia até confessar, sendo a pessoa mais nova na história do Estados Unidos a ser condenada à pena de morte.
Além de canções políticas, Heron sempre falou de sua vida pessoal de maneira visceral e direta. Nunca escondeu seus problemas com as drogas. Um dos seus maiores sucessos, “The Bottle”, abordava os perigos do alcoolismo; na música “Angel Dust”, nome de uma droga semelhante ao crack, ele alertava para os perigos do vício, do qual sofreu.
Em uma de suas últimas entrevistas, concedida à revista New Yorker, Heron fuma crack na frente do repórter e, em vários momentos, simplesmente dorme. O vício afetou sua carreira durante muito tempo, tanto que, por um longo período, Heron ficou longe dos holofotes e se trancava em casa. Nessas ocasiões, segundo ele, recebia o dinheiro de direitos autorais de suas músicas e o gastava em drogas.
Setlist especial de Gil Scott Heron, selecionado pelo programa Trombeta Radio Show, comandado por Lucas Viotto na Rádio Antena Zero.
O seu hiato musical, que já durava quase duas décadas, teria fim somente em 2010, com o lançamento do LP I’m New Here, muito aclamado pela critica. Este seria uma espécie de disco de despedida, no qual as letras dialogavam muito com o tema da morte, como na faixa “Me and the Devil”, originalmente gravada pelo bluesman Robert Johnson, e “New York is killing me”.
Definir musicalmente o cantor, poeta e pianista Gil Scott Heron é praticamente impossível. Nas lojas de discos, pode-se encontrar sua obra tanto na seção de funk, soul, jazz quanto na seção de música eletrônica, como o disco We’re New Here, no qual Heron é remixado pelo produtor britânico Jamie XX.
Para ouvir: Pieces of Man (1971), Bridges (1977) e I’m New Here (2010).
Gil Scott Heron foi inspiração para muitos artistas. O seu legado continua por meio daqueles que usam a música como instrumento de mudança, reflexão e contestação.
*Lucas Viotto é geógrafo, tradutor e caricaturista.