Congelamento

Fotografia de pedras de gelo sobre um fundo escuro.
Imagem: Foto de Jan Antonin Kolar na Unsplash

 

por Felipe Sanches*

No final de 1985, o ministro da Fazenda caiu e, no início do ano seguinte, assumiu aquele que, então, era presidente do BNDES. O retorno à democracia vinha com muito atraso, o que também se refletia em décadas de política econômica equivocada – entre muitas outras graves consequências do triste período autoritário.

A inflação era galopante e corroía a renda das pessoas. Nos mercados de todo o País, o que mais se ouvia era o som das máquinas etiquetadoras portáteis, que toda manhã e, às vezes, à tarde, eram freneticamente utilizadas pelos funcionários, ávidos por remarcar todos os preços de acordo com a inflação, que beirava 1,5% ao dia.

A solução foi um novo plano econômico, o Cruzado, que cortou zeros, congelou preços e entusiasmou o Presidente da República a conclamar toda a população a fiscalizar o tal congelamento, incentivando que se denunciasse os comerciantes não cumpridores da determinação.

Anton Fischer, dono da banca de miúdos na feira, decidiu “inovar”. Apoiador, de primeira hora, da ditadura, não compactuava com a nova política econômica, nem com o plano Cruzado, e se revoltou contra o congelamento. Tal atitude, com motivações políticas ou não, foi acompanhada pela maioria dos bucheiros, açougueiros, granjeiros e afins que o cercavam, o que levou à sua organização em um grupo clandestino de venda de carnes. O comércio irregular atendia por encomendas, normalmente feitas ao telefone de Anton, e as mercadorias eram armazenadas em sua garagem. 

Percebendo um movimento anormal na casa em frente à sua, Abílio, investigador da Polícia Civil de São Paulo, pediu a seu filho Álvaro, então com 13 anos de idade, que fosse empinar pipa na rua, próximo à garagem do vizinho, e colhesse tantas informações quanto pudesse ouvir. O garoto, entusiasmado com a tarefa solicitada pelo pai, se prontificou e, por meia hora, empinou sua pipa na calçada, quando, de repente, voltou para casa com o olhar congelado. Abílio, então, perguntou: “O que houve?”. No que Álvaro respondeu: “Papai, o delegado Altair saiu com uns dois quilos de moela daquela garagem.”

*Felipe Sanches é pós-graduado em Cinema e linguagem audiovisual, graduado em Geografia pela Universidade de São Paulo, poeta, editor de livros didáticos, colaborador de publicações da Editora Gota e coidealizador da Revista Aluvião.

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