Entre a dor e o nada eu prefiro o nada

Imagem de uma estátua.
Imagem: Foto de Frantisek Duris na Unsplash

 

por Eduardo Bonzatto*

Viver nesse tempo é fácil como chupar um sorvete. Tudo parece entendido, tudo parece explicado, tudo parece certeza. E assim vamos digladiando nossas voracidades, na expectativa de demolir o outro, que também ostenta suas próprias certezas no cardápio sumário das ofertas do dia.

O filósofo já havia advertido que os homens modernos preferem a dor quando oposta ao nada, pois temem o desconhecido.

Desde o renascimento da ideologia política mais rasa, que divide as opiniões e preferências entre dois polos ignoráveis, o nada espreita do sótão a festa da inocência. Cada um com suas clavas coloridas, bravatando verdades parciais, festejam a maioridade política como infantes.

Mas, é preciso certo distanciamento para que possamos vislumbrar o quadro todo e não apenas a parte que adotamos ou a que criticamos. O quadro é mais aterrador, pois não nos isenta da identificação colaboracionista geral em que se transformou o declínio. 

A degeneração da humanidade encontrou nesse tempo preciso seu rubicão. Os sinais apontam para um lugar onde não há mais retorno, nem de humanidade e muito menos de ecologias.

Mas não há alarmismos diante do desconhecido, muito ao contrário. Talvez o caminho que antecede o hiato de nossa queda seja diverso da herança colonial que até aqui marcou todos que pensam.

A racionalidade instrumental que engendrou nossa forma de pensar, embora se apresente como soberana, é apenas uma parte de poder no jogo vital. O cérebro que a contém também é um órgão tímido nos fluxos vitais. Não mais que os parasitas que tornam a nossa vida possível. 

As redes são muitas e variadas, não apenas as informacionais. 

Mas apenas para ficarmos nas redes familiares que nutrem os sistemas políticos, econômicos e culturais, nos anos 1990 essas redes ganharam um estatuto global que chamamos de neoliberalismo. Agora é o inominável, aquele sistema que surgiu em dado momento histórico e que passou, para determinar que agora cada projeto pode ser diferente. Mas esse inominável, devido à sua consistência e soberania, veio para ficar. Não uma etapa do sistema capitalista, mas uma nova forma de dominação, em que cada elemento do humano se objetificou. E a autoria da coisificação se tornou autônoma, autorizada pelo próprio humano. Esse grau de desumanização não encontra paralelo na jornada da modernidade.

A retórica da justiça social, ecológica, animal, natural igualmente se autonomizou diante da irreversível heteronomia do planeta sob as forças degenerantes colocadas à disposição do homem e não foi a bomba atômica a causadora dessa nova forma de queda. Foi a igualdade tanto ansiada, tantas vezes prometida e agora acessível, desde que o humano se objetifique com seus objetos cintilantes.

Quando se prega ascensão pelo consumo se afirma a igualdade, mas a igualdade não é possível num mundo de humanos, afinal apenas um objeto é igual a si mesmo.

Com a erradicação da diferença, a liberdade equivale à opressão e a opressão equivale à direção, basta apontar o dedo.

Com o inominável neoliberalismo, a ética finalmente abandonou seu esconderijo semântico para revelar-se como desigualdade natural, assim como seus correligionários, a moral e o valor. Agora é justo oprimir e é moralmente válido destruir o próximo. Quando ao valor, bom, o empoderamento é que determina.

O mundo então encontrou uma aparente nova soberania: dos mercados.

O anonimato que essas redes geraram tem avançado de modo incontornável por todos os países do mundo. 

Forças culturais tecnológicas não serão facilmente anuladas, pois consideram a teia psíquica como uma elevação de humanidade. Aliadas a essa força impressionante, o consumismo elevou ao mesmo patamar as antigas classes sociais, equiparando em simbologias o status democrático.

Os papéis institucionais se acomodaram em seus nichos e agremiações, estabelecendo patamares isonômicos para além dos discursos ideológicos. Um estado acanhado para suas funções básicas, educação, segurança, saúde. Uma teia social composta por colaboradores sem vínculos, preocupados em pagar as prestações do cartão de crédito que a todos submete. Mercados libertos dos constrangimentos regulares para ofertas generosas que outrora os sistemas de controle detinham: educação, segurança, saúde.

E sobre esse monolito primordial discursos ideológicos que ousam convencer os acólitos sobre a natureza do fim. De um lado, a direita com suas bandeirolas passadistas de família, capital e regulações. De outro, a esquerda ignorante tentando restabelecer as proteções aos desvalidos, empregando seus acólitos nas redes burocráticas de um estado que já não legisla para que a aparência das velhas grandiosidades do estado possa ser resgatada. 

E nos discursos, o roto falando do esfarrapado, pois as famílias estão desunidas, o capitalismo já não mais funciona sob o prisma competitivo, a assistência social é necessidade neoliberal, o estado continua encolhido e sem outra função do que acolher os acólitos. Há trinta anos sem que o modelo neoliberal seja arranhado em seus protocolos por nenhum governo prometeico.

Retórica, eloquência, logomaquia, uma discussão sem fim para manter a atenção de cada um no seu próprio umbigo. Na escala pretensiosa dos faladores, não sobra ninguém, pois cada qual quer pertencer a esse mundo, em que a democracia é o poder na mão de cada cidadão. E o poder vicia como a carne sangrenta, como dizia Goya.

Cumpre-se assim o ciclo de Thanatos, das forças da morte soterrando as forças do prazer, detectado por La Boetie em seu Discurso da Servidão Voluntária (séc. XVI), escrito no raiar da modernidade, cada um servindo voluntariamente ao poder e ninguém servindo ao humano-terra, todos os seres que existem fora da soberania humana e partilham de uma humanidade ampliada.

As pessoas sentem os benefícios a despeito dos malefícios, ocultos pelo ego. Com seus celulares, suas roupas e bens de consumo, seus automóveis de durabilidade precária, num ciclo de obsolescência sem fim nem começo, crentes na educação para um mundo que já se proletarizou completamente, atrás da saúde para patologias sociais entranhadas como normose, apegadas a políticos doentes de populismo raso, num mundo sem cuidado nem freio, atropelando a vida numa história estagnada, repletos de certezas que proporcionam conflitos sem razão mas razoáveis, desamparados do amor mínimo que flexiona o sentir antes do pensar e que poderia salvar as gerações vindouras que já chegam prontas para o mesmo significado da dor, gritando numa filosofia refinada que entre a dor e o nada, preferem a dor, já que o nada é a dúvida e o desconhecido. 

Alguém está fora do modelo, sem consumir variedades, sem endividamento, sem patologias oriundas, sem certezas, sem vocação para bandeirinha, sem admiração do próprio rosto na rede, sem alguma doença da psiquê para ostentar, sem ideologia para defender?

Aqui a ignorância assumiu um novo significado: o do conhecimento, da certeza e da fatalidade segura num futuro que é apenas o prolongamento do presente.

Cada qual suportando seu conhecimento, sua tecnologia, suas certezas, seu futuro e suas vidas como quem carrega um saco de tijolos. O nada é que é insustentável e bastaria largar no chão o saco de tijolos e seguir leve, mas a ansiedade se tornou equivalente ao ar que respiramos. E o ar é de chumbo.

* Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). 

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