O combate à intolerância religiosa na perspectiva de uma educação antirracista

Fitas coloridas de santos em primeiro plano e ao fundo várias baianas vestidas de branco


por Stéfanie Fanelli Casellato*


Numa sociedade racista não basta não ser racista, é necessário ser antirracista.

Angela Davis

 

Casos de violência contra praticantes de religiões de matriz africana ganharam as mídias nos últimos anos. Em meio à enxurrada de notícias, destacam-se as frequentes ocorrências de ataques a terreiros de umbanda e candomblé, envolvendo destruição de imagens, incêndios e agressões físicas contra religiosos. Autoridades afirmaram que as denúncias aumentaram quase 70% em todo Brasil em 20151 . Esse boom sobre o assunto nas manchetes da mídia em geral repercutiu no tema de redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) de 2016.

Que ninguém se engane ao supor que esse tipo de violência é recente em nosso país. Esse avanço nos números reflete mais atenção da população e das autoridades com relação ao assunto, que vem sendo denunciado com mais frequência. O poder das redes sociais, e o aumento do acesso à informação e aos meios de comunicação, sem dúvida, amplificam a discussão. Além disso, a pressão constante de comunidades religiosas e do movimento negro têm ecoado com mais força. Construída em torno do mito da democracia racial, a realidade brasileira está longe de ser sinônimo de respeito à diversidade.

Falar em intolerância religiosa no Brasil é falar, majoritariamente, em violência contra as chamadas religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé.  Tal afirmação se sustenta por um dado concreto: nossa sociedade é racista. E o racismo que estrutura as relações sociais por aqui tem uma origem e alguns desdobramentos bastante específicos, sem os quais não é possível explicar nem entender o tema em questão.

A violência contra as religiões de matriz africana no Brasil é histórica e está diretamente relacionada ao nosso passado escravista. A atitude do branco diante da cultura da população africana foi utilizada como instrumento de transformação de seres humanos em mercadorias, verdadeiros objetos a serviço da empresa europeia nas Américas. A escravidão negra foi responsável por um intenso processo de aniquilamento da população de origem africana, em todos os sentidos: o corpo, a mentalidade, os sentimentos, a linguagem, as práticas sociais…. Tudo que vinha do negro era desvalorizado, proibido, demonizado e, nem sempre com sucesso, apagado. Seus cabelos? Ruins. Sua sexualidade? Foi igualada à de um animal no cio. Sua música? “Só batuque”. Seus idiomas? Apenas simples dialetos. Seus conhecimentos? Crendices e folclore. Sua religião? Macumba, feitiço, coisa do demônio.

Perseguir e deslegitimar a prática religiosa da população negra era e ainda é sinônimo de negar a sua identidade. O laço entre as manifestações religiosas e a ancestralidade africana é muito forte. O candomblé, por exemplo, inclui em suas práticas cantos em línguas de origem iorubá e banta, além de festas e histórias transmitidas por várias gerações. As marcas mais diretas da presença africana nas Américas podem ser observadas nessas religiões que resistiram às tentativas de aniquilamento de sua identidade, como, além do candomblé, o vodu haitiano e a santeria cubana.

Essa total desumanização do negro em termos culturais e ideológicos deixou um gigantesco legado de preconceito e violência, conforme atestam os casos aqui citados. Como forma de combater essa herança negativa dos tempos de escravidão em nossa sociedade, foram criadas as chamadas ações afirmativas, que podem ser realizadas por meio de cotas, de projetos, de leis e de planos de ação, tanto por meio da iniciativa pública quanto da privada. Primordialmente, a aprovação dessas ações em nossa sociedade significa o reconhecimento, por parte do Estado brasileiro, de que houve um crime contra a população negra no Brasil e de que são necessárias ações diretas para corrigir a desigualdade racial.

As ações afirmativas podem ser pensadas para promover a equiparação de oportunidades, combater o preconceito e o racismo e reverter a representação negativa dos negros em diversos âmbitos, como na mídia e na literatura. Assim, é possível refletir a luta contra a perseguição das religiões de matriz africana no âmbito da promoção desse tipo de política. No contexto da educação formal, uma das políticas afirmativas de maior impacto foi aprovada por meio da aplicação da Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003)2, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas públicas e privadas da educação formal básica.

A intolerância religiosa no país manifesta o completo desconhecimento da população com relação às origens históricas e culturais das religiões de matriz africana.

A intolerância religiosa no país manifesta o completo desconhecimento da população com relação às origens históricas e culturais das religiões de matriz africana. Por exemplo, a identificação de Exu (orixá da comunicação, guardião das cidades, casas e do comportamento humano) com o demônio é uma construção realizada pelos colonizadores europeus que continua impregnada na mentalidade geral da população. Ao aprender um pouco sobre a cultura africana, compreendemos que a ideia de “deus e demônio” é própria da cultura cristã.

Promover o ensino e o aprendizado da história e da cultura afro-brasileira é um caminho não só para educar uma sociedade plural, mas, sobretudo, para desenvolver na população de origem negra no Brasil o reconhecimento e a valorização de sua identidade. Falamos aqui de uma questão de cidadania, de inclusão do outro no corpo social. Como uma população que não se vê representada na história e nos espaços de poder pode tomar para si a tarefa de construir o país? Isso é completamente discrepante.

Nesse sentido, reivindico uma reflexão formulada pelo antropólogo e professor brasileiro-congolês, Kabenguele Munanga. De acordo com ele, identidade, educação e cidadania são termos chave para o entendimento de um projeto de Estado que vise ao funcionamento pleno de uma democracia e à garantia dos direitos dos indivíduos. O autor faz uma defesa do multiculturalismo, constatando que é fundamental que todos os grupos sociais do país tenham suas identidades reconhecidas, para além de uma identidade genérica, a forjada identidade nacional, que gera apenas políticas universalistas na tentativa frustrada de abarcar a sociedade como um todo.

Só assim, assumindo o multiculturalismo e agindo a favor deste é que será possível a construção de um Estado democrático de direito, o qual depende diretamente da ação de TODOS os indivíduos como sujeitos políticos, sociais e culturais de seu país.

Faz-se necessário, assim, integrar as diferenças, aceitando as identidades particulares, como a identidade negra, e apreender o outro, o diferente, como sujeito social. Só assim, assumindo o multiculturalismo e agindo a favor deste é que será possível a construção de um Estado democrático de direito, o qual depende diretamente da ação de TODOS os indivíduos como sujeitos políticos, sociais e culturais de seu país; se alguma das identidades existentes for negada, torna-se impossível a existência plena deste Estado.

Sem dúvida a Lei nº 10.639/03 e seus desdobramentos na elaboração de políticas educacionais representam um salto quantitativo e qualitativo nesse debate; porém, trata-se de um enorme problema que infelizmente não pode ser resolvido apenas com ações calculadas e objetivas.  Na apresentação da publicação sobre o racismo na escola, Munanga3 elucida que não se trata de algo corrigível diretamente no campo da razão: não é simplesmente instruindo a população e abordando, na escola, a importância da cultura afro que o conflito de identidades será solucionado. Segundo o autor, é necessário atingir o nível do imaginário e das representações, pois é este nível, para além da lógica e da razão, o responsável por introjetar crenças, estereótipos e valores que codificam atitudes.

É no nível do imaginário que devem ser combatidas as campanhas veiculadas pela grande mídia que reproduzem uma imagem negativa do negro e de sua cultura. A agenda de combate à segregação racial evidencia que é preciso se posicionar: falar a respeito, denunciar as situações de violência e procurar formas de atuar nesses contextos.

A luta pelo reconhecimento da história e da cultura afro-brasileira em nossa sociedade já dá seus primeiros frutos. Testemunhamos hoje uma jovem geração de negros que teve acesso ao ensino superior e que utiliza sua formação e seus espaços de atuação para amplificar os debates e propagar as demandas da luta antirracista no Brasil. Sem dúvida, esse contexto age diretamente para que as pessoas compreendam melhor as situações e denunciem os casos de racismo com mais veemência.

Ações afirmativas na educação e em outros contextos não são, e nem se propõe a ser, receitas de efeito imediato. É preciso compreendê-las como parte de um combate que já dura mais de quatro séculos, e que deve continuar até que injustiças sejam extirpadas e direitos sejam assegurados. Nossos passos vêm de longe.

 

*Stéfanie Fanelli Casellato é historiadora, professora e pesquisadora na área de arte e cultura afro-brasileira. Email: tetefanelliemail@gmail.com

  1.  PONTES, F. Denúncias de discriminação religiosa aumentam 70% no país, revela Disque 100. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2016-01/denuncias-de-descriminacao-religiosa-sobem-70-no-brasil-mostra>. Acesso em: 05 nov. 2017.
  2.  BRASIL. Casa Civil. Lei n° 10.639, de 09 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 jan. 2003. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm>. Acesso em: 05 nov. 2017.
  3.  MUNANGA, Kabengele. Superando o racismo na escola. Brasília: Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.

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