por Vanessa Stollar*
Quem tem medo de arte contemporânea? Essa pergunta já foi tema de livros, documentários e exposições de arte. A arte contemporânea pode causar estranhamentos, dúvidas, encantamentos e reflexões. Porém, devido aos últimos acontecimentos envolvendo a arte contemporânea no Brasil, parece que as reflexões, questionamentos e dúvidas, que são próprios do universo da arte, foram substituídos pelo ódio, pelo fundamentalismo religioso e por comportamentos fascistas. A pergunta inicial desse texto, que já foi usada para provocar diálogos com a arte contemporânea, ao meu ver, agora poderia ser substituída pela pergunta formulada no título.
O ódio parece reger o discurso de vários “críticos de arte”, os quais se veem no direito de pedir (e de conseguir) o fechamento de exposições, a censura de peças de teatros, e até agressões físicas a artistas e funcionários de museus. A intolerância reaparece no cenário atual da arte contemporânea, como um dos principais critérios de curadoria. Qual o lugar da arte, num cenário de intolerância? Qual a autonomia do território das artes numa sociedade em que devido a um pedido de um dito movimento, um juiz decide que é permitido emitir opiniões racistas, homofóbicas, fascistas para não ferir a liberdade de expressão, e o mesmo movimento diz que um artista não pode realizar uma performance em um espaço que lhe é próprio? Parece que a liberdade de expressão só serve se estiver a serviço de determinados interesses, principalmente aquelas que ferem a diversidade, a tolerância e os direitos humanos.
“Onde tem arte nisso?”, ou “Isso não é arte!” foram os comentários que eu mais li nas redes sociais, referente a performance La Bête que foi realizada na abertura da Mostra Panorama da Arte Brasileira no Museu de Arte Moderna de São Paulo e a exposição “Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”. Parece que tem muita gente interessada na arte e na arte educação, em se instruir mais a respeito da história da arte, seus conceitos, críticas e fruições. Mas devo avisar a essas pessoas que a primeira premissa para a crítica de arte é o contato com esta. A visita a museus, exposições, leituras de textos sobre arte, escutar os artistas, ou seja, vivenciar a arte é fundamental para o diálogo com o universo artístico. À quantas exposições esses curadores raivosos já foram? Quantos livros de crítica de arte já leram? Quais os critérios além da defesa da “moral e bons costumes” são usados para legitimar ou deslegitimar o que artistas, historiadores e críticos (reais) de arte legitimaram como tal? Enquanto isso, a disciplina de Arte ainda tem que lutar por sua permanência como componente curricular obrigatório, museus e galerias de arte passam constantemente por precarizações.
Neste ano, completaram-se cem anos que o pintor, escultor e poeta francês Marcel Duchamp (1887-1968), questionou um antigo conceito de arte. Conceito este que associava a arte sempre ao que causa admiração pela beleza harmônica e canonizada, associava o artista a um gênio nato indomável, e a obra de arte como a obra prima única em que a genialidade do artista irá se apresentar através do domínio da técnica. O conceito de arte já passou por diversas transformações ao longo dos séculos. Não é um conceito estável, rígido e único, pois a arte está inserida na história, é a manifestação de sujeitos inseridos nessa história, que também é transitória. Não somos mais os mesmos que erámos na Idade Média, por isso, a arte também não é. Ou será que somos?
Segundo a filósofa, escritora e professora brasileira Marilena Chaui (1941-):
Os primeiros objetos artísticos – estatuetas, pinturas nas paredes das cavernas, sons obtidos por percussão – eram objetos mágicos, ou seja, não eram uma representação nem uma invocação aos deuses, mas a encarnação deles, pois se acreditava que as forças divinas estavam neles. (CHAUI, 2013, p. 248)
A are surgiu há milênios no interior do culto e para servi-lo. A arte moderna rompeu com essa forma de arte, a serviço apenas da religião, do poder ou de uma elite. A arte moderna e a contemporânea reivindicaram pela autonomia da arte. É isso que o artista surrealista belga René Magritte (1898-1967) quis dizer quando pintou um cachimbo e escreveu, abaixo da imagem, “Ceci n’est pas une pipe” (Isto não é um cachimbo, em português). Aquilo não era e nunca será um cachimbo, é uma pintura. Arte é representação. O filósofo fenomenologista francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), no ensaio A Dúvida de Cézanne, escreveu que o artista é aquele que fixa e torna acessível aos demais humanos o espetáculo de que participam sem perceber.
A arte nos tira de nossas zonas de conforto, nos provoca; ela estabelece conexões entre as experiências humanas. E por isso ela é essencial, e também por isso, na visão de algumas pessoas, deve ser controlada e cerceada. A censura e o ódio são coerentes para aqueles que querem garantir a unicidade de privilégios natos. A arte contemporânea questiona esses privilégios. Ela é tão ampla quanto as possibilidades que temos de viver e de se relacionar. Mostra que não existe só um modo de ser e de se comportar. Ela é a manifestação e materialização da própria diversidade dos indivíduos. Mas para aqueles que querem impor um único modo de viver e ser, a arte não cabe. Aquilo não é arte.
Muitos ainda não conseguem dissociar a obra de arte de arte dessa origem religiosa, e ainda acreditam que o único lugar de/para a arte é a religião, e assim o lugar reservado a arte é o do fundamentalismo. Essa nova arte pede um novo olhar. Não só o olhar do entendimento analítico. Um olhar ativo, participante, que constrói o significado da obra junto com a percepção do observador, que não está mais em uma zona de conforto.
Vários aspectos devem ser levados em consideração com a série de ataques que a arte vem sofrendo, aspectos que estão dentro e fora dos territórios artísticos. Um deles trata do absurdo que é a descontextualização do objeto artístico. Assim como se eu tocar uma nota da nona sinfonia de Beethoven, o ouvinte não terá a menor ideia do que foi essa composição musical e toda sua complexidade, se eu reproduzir um gesto de um dançarino, isso nunca irá traduzir o que foi a sua dança; uma foto de uma performance não é uma performance. Não podemos, de maneira nenhuma, ter a dimensão do que ela representa, apenas por uma imagem compartilhada nas redes sociais.
A literatura, como a pintura, a música, a escultura e qualquer das artes é a passagem do instituído ao instituinte, ou seja, uma transfiguração do existente numa outra realidade que o faz renascer e ser de maneira inteiramente nova. A transformação ou transfiguração da realidade numa outra, nova existente apenas no trabalho realizado pelo artista, chama-se obra. (CHAUI, 2013, p. 248)
Esse trecho nos fala não somente que o objeto artístico não pode ser descontextualizado, mas também que a arte lida/traduz/dialoga com as realidades para construir uma interpretação desta, mas ela não é esta realidade. Isto não é um cachimbo. Em vista disso, cito outro dos importantes aspectos a serem considerados: os vários fenômenos que absurdamente atribuídos à arte, como a violência e a pedofilia, de fato existem, mas não estão acontecendo nos museus. Estão, muitas vezes, nos lares das famílias que defendem a moral e os bons costumes ou, diariamente, no assédio sofrido pelas mulheres no transporte público – estão nas estatísticas que mostram o número de jovens negros assassinados todos os dias.
A censura moralista diz que a liberdade de expressão só serve se for aquela que fere os direitos humanos e não permite a existência da arte em locais legítimos para a sua realização. Se nem os espaços destinados à arte são possíveis como território de questionamentos e vivências, realmente estamos vivendo uma das mais violentas ditaturas que já existiram.
* Vanessa Stollar é mestra em Artes e graduada em Educação Artística pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), e professora de Artes no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP).
Referências
CHAUI, Marilena de S. Iniciação à filosofia. São Paulo: Ática, 2013.
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.