A cidade e o tempo

Foto de cima de pedestres caminhando apressados na calçada de alguma cidade. A foto registra o movimento dos corpos.


por Mariana Luppi*


Rosa não aguentava mais viver na cidade. Era dia atrás de dia no cinza, concreto e fumaça. Mil rostos na multidão que nunca cruzavam o olhar com o dela. E aquele tempo da cidade, que virou o seu. Sentou-se na sua poltrona, trancada na sua quitinete, o fim de semana inteiro, pensando em forma de escapar, mas toda e cada uma exigia ao menos mais alguns anos de vida frugal numa das cidades mais caras do país. Então suspirou e terminou a lata de cerveja solitária enquanto ouvia as comemorações distantes do futebol de domingo, e caiu na cama para acordar atrasada em mais uma segunda feira.

Na terça ela tinha aula, negociada no trabalho em troca de compensação excessiva, ia à tarde para universidade. E por mais que a universidade fosse mais verde, as pessoas também cheiravam fumaça. Na sala lotada ela não conseguia ficar quieta e ouvir o professor monótono, desenhava, trançava o cabelo, escrevia poesias. Quando começou a chover ficou muito tempo olhando a névoa da tempestade subir, dando ares de selva ao pequeno bosque da entrada.

Mas a cidade ainda podia lhe trazer surpresa, e a surpresa foi Natália, a menina negra de longas tranças atrás de Rosa na fila do café, que só o café salva as gentes do sono permanente do cotidiano excessivamente desperto. Natália tinha um belo sorriso e parecia tímida ao pedir emprestado o livro que Rosa carregava displicente.

– Vou fotografar rapidinho, preciso só de um trecho.

Quando terminou puxou qualquer assunto, eu curso filosofia e você? Pós na letras, nunca conheci ninguém da filosofia. Mas a filosofia está em todos os lugares. Quem dera conhecê-la então melhor. Que preguiça de ir para casa. Vai ter um trânsito absurdo. Não quer ir andando até o metrô? Mas então vamos pegar uma cerveja antes.

O bar ao lado da estação pareceu atraente depois da caminhada, sentaram-se do lado de fora sob o toldo vermelho. Rosa já ia gostando da companhia da menina, e não tirou os olhos dela enquanto o sol ia caindo cada vez mais na diagonal, dando a tudo um ar de saudade. Foi pouco depois do pôr-do-sol quebrado pelos prédios que deram o primeiro beijo.

Naquela noite, envolvidas uma na outra no motel barato, Rosa pensava que a cidade era afinal do inesperado, do encontro, e, nas curvas dos corpos, do sublime. Acendeu um cigarro pensativa enquanto Natália roía as unhas.

– Tenho que te contar uma coisa

– O que quiser.

– Eu tenho um namorado.

Rosa olhou curiosa, sem saber se fora usada numa traição ou se…

– Mas é um namoro moderno, não tem problema.

– Então não vamos mais falar disso.

Depois do último trago jogou-se de novo entre os braços e as pernas, que lhe acolheram em paz.

No dia seguinte Rosa flutuou para o trabalho, e na hora do almoço ficou olhando para cima, os prédios do centro, todos grudados, com frisas desgastadas, colunas gregas, pichações misteriosas, pareciam mais tragáveis porque ela ainda sentia o toque da outra.  Só que esse toque foi apagando e apagando da pele, de forma que no fim do dia era apenas uma sensação bem vaga de esperança que apertava o peito. O tempo esfriou, e ela quis tomar algo quente. Pensou em um café elegante no centro velho, mas o cuidado com o bolso levou-a ao Paissandu, numa lanchonete na beira da avenida, cheia de rockeiros e hippies. Via passando, no tempo da cidade, fossem os ambulantes, catadores de papel e mendigos, fossem os carros de luxo, ônibus elétricos e homens de terno, tudo com a mesma emoção de tempo perdido. Se afogou no chá quente pensando que aquela cidade era mesmo o que era.

Mas a cidade ainda podia lhe trazer surpresa, e a surpresa foi Leon, que tinha os cabelos longos e a pose de artista, e espichou o pescoço para dentro da lanchonete. Pedia que alguém atravessasse a rua e pegasse para ele um ingresso a mais da sessão gratuita, que só estavam deixando um por pessoa. E se Rosa foi, foi como ia a quase tudo, arrastada pelo tempo errado dos outros.

No final das contas a acompanhante de Leon furou e ele convidou Rosa para entrar. O filme era um preto e branco italiano que encantou Rosa principalmente porque era lento, tudo acontecia em outro tempo, o olhar da câmera parava sobre as paisagens e as deixava respirar.

Leon falava muito, e acelerado, e foi pondo Rosa de volta no tempo. Estudava em uma faculdade privada ali por perto, ia ser advogado, contou do tempo moroso da injustiça.  Ela não pôde recusar mais uma e outra cerveja, e ele não pôde recusar levá-la em casa. No caminho brincando puxou-a, e a centímetros do rosto confessou que tinha compromisso, mas jurou que não tinha problema estar com ela. Rosa suspendeu o juízo e convidou-o para subir. Acordou do meio da noite e ficou ouvindo a respiração do rapaz, iluminado pela lua cheia bem alta no céu.

Depois de uns anos solteira na cidade, Rosa tinha se acostumado a apenas fazer sexo encomendado por aplicativos ou garantido por altos teores alcoólicos de baladas e shows. Conheceu duas pessoas, um dia atrás do outro, em uma profundidade que a fez se entregar até o tempo parar. No dia seguinte, na hora do almoço, suspirava por todo corpo pensando quando de novo sentiria o que sentiu. Aprendera o tempo do ceticismo e da solidão, não esperava mais do que estar sozinha.

Mas Natália ligou ainda aquele dia, e Leon mandou mensagem no seguinte, e a ansiedade de Rosa foi crescendo para vê-los cada um a seu tempo.

No primeiro mês saiu com as amigas de Natália, um grupo colorido e barulhento, uma vez no Arouche, outra na Augusta. E Leon convidou-a para mais um filme, e outro na semana seguinte, seguido de um jantar regado a massa no coração do bixiga.

No segundo mês Natália pediu ajuda para mudar o penteado e as duas acabaram rolando na cama com as mãos cheia de tintura. Leon levou-a para passear na Paulista e ver os artistas de rua arranhando de forró a metal.

No terceiro mês foi com Natália em uma balada e dançaram juntas até o chão até o sol raiar – para depois tomar café da manhã observando os casais domingueiros na Frei Caneca. E virou uma noite com Leon em uma maratona de filmes expressionistas alemães e neorrealistas italianos.

No quarto mês foi expulsa de um bar onde ela e Natália se beijavam, reuniram algumas amigas e no dia seguinte vinte mulheres se beijaram no meio do dia na frente do proprietário chocado. Leon brigou numa sinuca na Santa Cecília e muito bêbado saiu gritando pelo largo que o bairro estava cheio de moralistas.

No quinto mês Natália achou que estava grávida e Rosa acalmou-a até convencê-la a fazer um teste – não estava, e Rosa acompanhou-a na semana seguinte até sua ginecologista em Pinheiros para saber o que havia de errado. E Leon convenceu-a a conhecer sua faculdade, um lugar que parecia um shopping center de paredes brancas brilhantes e cheiro de perfume francês.

No sexto mês foi ao Ibirapuera com Natália, que apareceu com uns patins, alugou uma bicicleta para acompanhá-la nos giros sem fim do parque, e voltou no ônibus com a cabeça apoiada no ombro dela, quase dormindo. E Leon levou-a a um sarau na periferia, que um amigo de um amigo indicara, e ela ficou a noite inteira extasiada com a poesia violenta das quebradas.

No sétimo mês acordou sorrindo um dia. Muito atrasada, não correu. No dia seguinte, sentou-se à noite na cama e apenas respirou, não lembrou da roupa para lavar, do chão para varrer. No fim de semana foi com Leon comprar roupas, se divertiram experimentando tudo que havia na gigantesca loja de departamento. Na semana seguinte encontrou Natália na universidade e mataram aula para tomar cerveja, e ajudar a montar a festa que estava para acontecer mais tarde.

O amor, aquele amor, era como vacina para o tempo da ansiedade. Havia tanto neles que ela não podia conhecer, não sabia o nome de seus companheiros, onde moravam e sequer se sabiam de sua existência – primeiro porque não quis saber, depois porque entendeu que eles não queriam falar, não queriam saber.

Tinha perguntado para Natália, se o namorado dela sabia, se ele também ficava com outras pessoas. Não sei não quero saber. Tinha perguntado a Leon se a companheira dele também tinha outros. Não sei não quero saber.

Tudo a seu tempo, no caso, o tempo dos outros, e Rosa não ficou ansiosa. Apenas resolveu estar presente, em cada momento em que lhe fosse permitido. Já olhava diferente a cidade, achava bonito os arcos do viaduto do chá, e o teatro municipal iluminado a noite. Leon lhe levara no teatro, para assistir um balé. Sentava nos bancos de concreto da biblioteca Mário de Andrade, lembrando da vez que Natália a chamara para estudar lá em um domingo à noite. E viver com eles, que agora ela via toda semana, foi colorindo a cidade de concreto, ela foi entendendo cada uma de suas partes, e imaginava conhecê-la inteira se vivesse mais algumas décadas com eles.

Natália contou que a ladeira porto geral, onde desceram para comprar presentes de natal no início do oitavo mês, já fora de verdade um porto, antes de canalizarem todos os rios. Leon a levou de bicicleta até o parque da juventude, onde subiram nas ruínas e ouviram aquele rap famoso que a fez entender que estava no Carandiru.

Mas a cidade ainda podia lhe trazer surpresa, e a surpresa foi num dia quente, enquanto caminhava sozinha pelas ruas boêmias próximas à antiga Faculdade de Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Passava leve e preguiçosa, num passo que nunca achou que fosse ter, sozinha mas não solitária, com o peito cheio e vibrante.

Então viu Natália, reconheceu-a de costas, pelo cabelo e pelos gestos delicados das mãos longas. Respirou para dar um passo a mais para a mesa de plástico na rua onde ela se sentava lânguida.

Então viu Leon, chegando da entrada do bar com uma grande garrafa de cerveja na mão e um sorriso inigualável. Ele pousou a cerveja na mesa, debruçou-se sobre Natália e deu-lhe um beijo cálido.

Rosa girou sobre os calcanhares e partiu com a pressa da cidade. Quase foi atropelada, uma, duas, três vezes. O tempo virou, e as nuvens que se acumulavam no horizonte chegaram rápido, com um vento violento. De repente o céu estava cinza chumbo, exceto por uma fresta que ainda iluminava Rosa como se fosse uma luz artificial. Algo em tudo isso fazia ela lembrar de alguma coisa, alguma coisa perdida na memória.

Voltou para casa e leu um poema. Sorriu. Sentou no parapeito da janela com seu caderninho de poesia, escreveu e deixou-se cair do décimo sétimo andar.

Eu preciso do tempo dos outros porque não me aguento no meu tempo. Eu vivo o tempo acelerado do mar de concreto, onde as luzes nunca se apagam. Quando não estou fazendo três coisas ao mesmo tempo me sinto improdutiva.

Então penso no futuro da humanidade enquanto varro o chão e analiso a letra de rap que toca no celular. Ou cozinho na ligação com a amiga cujo relacionamento lhe adoece, atenta aos resultados do futebol na tevê. Ou penso na compra do mês e faço listas de tarefas enquanto estudo para a faculdade.

Mas não com vocês. Me perco no seu tempo demorado de acordar. Me perco no seu tempo acelerado de beber. Me perco do meu tempo inteiro entregue ao tempo de vocês.

E se vocês estão juntos, não preciso mais do tempo. Saio do tempo de vocês, para o nada.

Eu sei que vocês não queriam saber, com sorte não saberão jamais.

Durmam e sonhem por mim.

Boa noite

* Mariana Luppi, comunista desde os 14 anos, atualmente militante feminista e ecossocialista, formou-se em filosofia e hoje escreve, estuda e milita nos intervalos do seu trabalho burocrático kafkiano. 

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