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por Sarita Borelli*
Preâmbulo (se estiver com preguiça, pule para A história de Teresa)
Posso dizer que meu interesse por mulheres escritoras tem apenas cinco anos. Em 28 anos de vida, raramente li textos escritos por mulheres, assim como muitas das mulheres que conheci podem contar relatos parecidos e, talvez, nem tenham se dado conta disso.
Lembro que na turma do 6º ano do ensino fundamental, havia um professor de Matemática que sempre levava histórias de matemáticos que se tornaram famosos por apresentar descobertas empolgantes que mudaram a percepção do mundo sobre diversos aspectos, como Henri Poincaré, Évariste Galois e Carl Gauss. Certo dia, perguntei ao meu professor se não havia mulheres matemáticas famosas. Aulas depois, ele distribuiu nomes de matemáticos para que fizéssemos seminários sobre a vida deles e, para mim, brindou-me com a figura de Sophie Germain.
Sophie Germain foi matemática, filósofa e física. Nasceu e morreu na França. Era autodidata e, por ser mulher, não pode ter uma carreira como pesquisadora. Entretanto, passou a frequentar a Escola Politécnica de Paris sob um pseudônimo masculino de um ex-aluno até que um supervisor do curso a descobriu e este tornou-se seu mentor e amigo. Sophie Germain fez contribuições fundamentais à teoria dos números e à teoria da elasticidade. Nunca se casou e quando morreu não foi reconhecida como matemática, apenas como rentière-annuitant, solteira sem profissão.
Posso dizer que muitos caminhos me levaram à Teresa de la Parra, 20 anos depois de conhecer a história de Sophie Germain. A demora se deve ao contínuo apagamento das mulheres da história, o mesmo apagamento que me leva a citar de cor poemas exclusivamente escritos por homens, o mesmo apagamento que me fez acreditar que os autores clássicos são do sexo masculino, o mesmo apagamento que só pude romper há 5 anos, quando comecei a me dedicar a ler autoras mulheres.
Graças ao rompimento desse paradigma, conheci a ilustre Teresa de la Parra.
A história de Teresa
Teresa nasceu em Paris, em 1889, e morreu em 1936, na Espanha. Seu nome de batismo é Ana Teresa de la Parra Sanojo, filha de pais venezolanos, aristocratas, diferente de muitas Teresas, teve oportunidade de estudar. E estudar bem! Em Madri, foi interna do colégio Sagrado Coração, onde desenvolveu o gosto pela escrita.
Quando passa a escrever, adota o nome Teresa de la Parra, como um pseudônimo. Esse desdobramento de seu ser possibilitou mais liberdade artística para as suas criações.
Entre Madrid, Cararas e Paris, La Parra pode estar com artistas e escritores, escrever, disputar prêmios e mirar em sua carreira, sendo reconhecida em vida como escritora. Deu conferências em Bogotá sobre a presença das mulheres na história e na cultura espanhola.
Ela se dizia uma feminista moderada. Para a época, um grande avanço, assim como, ter destaque e ser referência no campo literário. Infelizmente, nem tudo são flores, Teresa morreu com 47 anos, vítima de tuberculose. Pesquisando sobre Teresa, encontrei um podcast que apresenta mais detalhes da sua vida: Venezoelanos.
A obra mais consagrada de La Parra é Ifigenia: Diario de una señorita que escribió porque se fastidiaba (em tradução livre, Ifigênia: Diário de uma senhorita que escreveu porque estava entediada). O livro é narrado em primeira pessoa pela protagonista Maria Eugenia, primeiro como uma carta e depois como um diário. Por vezes, durante a leitura, de tão imersos que ficamos no mundo de Maria Eugenia, esquecemos que se trata de um diário. A autora consegue nos envolver em seus pensamentos e reflexões, tanto práticas quanto filosóficas, sobre os costumes sociais, sobre a moral e sobre o papel da mulher. Cheio de personagens complexos, o livro é empolgante e nos desperta para uma realidade tão distante e tão próxima da nossa.
O encantamento com um livro tão moderno, de uma protagonista que reflete sobre sua independência no início do século XX, é arrebatador, pois faz pensar que desde sempre nós, mulheres, tivemos grandes expoentes que romperam barreiras e que lutaram com as ferramentas que haviam para que fossem ouvidas e que pudessem ser quem quisessem ser.
O lugar-comum das histórias dessas grandes mulheres é que, em algum momento, contaram com a aprovação ou o apoio dos homens. Em julho de 1925, Teresa de la Parra escreve uma carta a Miguel de Unamuno (1864-1936), poeta espanhol da geração de 98, transcrita aqui em uma tradução livre.
Carta de Teresa de la Parra a don Miguel de Unamuno, julho de 1925[1]
É a você, meu estimado amigo e mestre, a quem devo, mais do que a ninguém, a satisfação íntima e serena, depurada de toda a vaidade, de haver escrito um livro.
Quando eu o conheci e lhe dediquei a minha novela no almoço de algumas semanas atrás, pensei que você não ia ler nenhuma de suas 520 páginas. É verdade que com acento austero e patriarcal de avô basco, havia demonstrado interessar-se muito vivamente por sua raça espanhola de mais além-mar. Falou dela com paixão, como se falara de sua própria ascendência, “verdadeira ressurreição da carne”, explicou você. Mas também é certo que logo, com o mesmo acento austero de avô basco e com ar muito depreciativo aliás, falou das pessoas superficiais, das mulheres cuja única ocupação é o vestir, e de todos aqueles que confundem lamentavelmente o modernismo ou moda com a verdadeira elegância: a escultural, a que reside no além do esqueleto, como a de Esopo de Velázquez em seus farrapos ou como a de Ulisses ao se apresentar nu à Nausícaa. Deduzi que mal podia encontrar graça diante de seus olhos uma novela cujo órgão direto de expressão, como o teclado em um piano, era quase todo o tempo a preocupação da elegância, não a escultural, mas sim a outra, a do equívoco lamentável, a do modernismo ou moda. E me fui convencida de que a novela e a autora haviam de lhe parecer igualmente triviais e indignas de atenção.
Grandíssima foi minha surpresa no outro dia, quando ao entrar em um recinto ouvi que você falava de Ifigênia diante de um numeroso auditório. Já tinha lido! E com o luxo de ter anotado pormenores! Você a analisava detalhe por detalhe, sem entusiasmos nem elogios, apenas com essa paciente curiosidade com que o naturalista examina un inseto do campo ou a flor silvestre que por primeira vez chamou sua atenção. Minha presença não alterou nem um pouco o fio de sua conversação, e seguiu detalhando o livro como se entre a autora e a recém-chegada não existisse o menor laço comum. Eu senti nesse instante o milagre do desdobramento, me fiz também auditório e, por primeira vez, encantada, livre de censura e de elogios diretos, sem assomos de vaidade, tive a sensação nobre reconfortante de “haver escrito”.
Quero te agradecer pelo milagre do desdobramento, quero agradecer pelo julgamento em escrito, mas quero agradecer sobretudo por estas 4 páginas que recebi anteontem, de apertadas notas feitas com lápis ao calor da leitura. Quantas são e que cheias estão de vida!
Os elogios são sóbrios, somente dizem indicando página e parágrafo “Bom”, “Muito bom” e, algumas vezes, “Muito bem!”, sem dar as razões; o que é uma forma de generosidade, porque minha imaginação pode escolher o que mais lhe agrade, e em momentos de fecundo otimismo forjá-las e escolhê-las todas!
As objeções são muito menos lacônicas. Como algumas delas terminam em um ponto de interrogação, me perseguem sem cessar com sua voz de pergunta. Eu quisera silenciá-las, mas elas não concordam com o silêncio. Necessito pois responder algumas delas que tenham a meu entender contestação, ou seja defesa, porque há outras, eu confesso que é igual ao da Esfinge, ficarão interrogando eternamente!
[…]
Pela carta, vemos que a novela de Teresa encantou Unamuno e este se deu ao trabalho de fazer comentários no calor da leitura, assim como elogios vagos no papel. A crítica para o trabalho feito por mulheres é garantida, os elogios nem tanto, vê-se a surpresa de Teresa ao receber as anotações e participar como ouvinte da conversa dele sobre o seu livro. Em um trecho da obra Ifigenia, uma fala do tio da personagem principal apresenta uma reflexão sobre o valor da mulher:
— Vejo Maria Eugenia, por esse assustador pressuposto, que te avalia caríssima! Ah! Você tem muito definida a consciência de seu próprio valor, condição indispensável para chegar a valer. Sim, sim, faz bem. Se queremos que os demais nos estimem um pouco, é preciso começar por estimarmos muito nós mesmos. Não se esqueça nunca disso, veja que é um princípio importantíssimo para uma mulher que geralmente só vale pelo que o homem a estima![2]
Desejo que em algum tempo futuro não precisemos de estima ou aprovação de homens, assim como desejo que histórias como as da Teresa de la Parra, Sophie Germain, a minha e a sua não permaneçam esquecidas ou indiferentes. Lutamos para que futuras gerações de mulheres possam se colocar ao lado e não atrás, não como exceção, mas como regra.
*Sarita Borelli é pós-graduada em Design Editorial pelo Senac, graduada em Letras pela Universidade de São Paulo, designer, editora responsável pela Editora Gota e idealizadora da Revista Aluvião.
Referências
[1] Carta original disponível em: <http://www.cervantesvirtual.com/obra-visor/carta-de-teresa-de-la-parra-a-don-miguel-de-unamuno-julio-de-1925–0/html/ff662bea-82b1-11df-acc7-002185ce6064_3.html#I_0_>. Publicada no El Universal em 19 de dezembro de 1926. (Carta escrita em julho de 1925.)
[2] Tradução livre de fragmento do livro TERESA de la Parra. Obra (Narrativa, ensayos, cartas). Biblioteca Ayacucho, 1982. p. 69.