por Andri Carvão*
Paulo M. era papa Mike. Ensino médio completo, diga-se de passagem, mais futebol do que estudos. No entanto conseguiu a muito custo passar no concurso público da PM. Quando passou no concurso, o prefeito era o Paulo “a rota na rua, estupra, mas não mata” Maluf.
Puta machão, casou-se duas vezes. A bem da verdade, só casou mesmo na igreja e no civil, tudo bonitinho, com a primeira esposa; com a segunda, como se diz, só juntou as escovas de dente. Pai de cinco filhos, sendo três do primeiro casamento e dois do segundo relacionamento, separou-se recentemente pela segunda vez. Depois da separação dizia que não queria mais saber de mulher “vou virar viado”, fazia troça virando qualquer um que estivesse perto dele. Daí voltou a morar com a mãe. “Se mulher fosse bom, Deus tinha uma.” Mas e a sua mãe? “Minha mãe não é mulher – é minha mãe!”
Aos fins de semana batia uma bola com os parceiros da academia. Mesmo com aquela protuberância caindo em cima do calção, não perdia uma pelada no campo ou no society e assim conseguia, com a ajuda dos amigos, colocar a cabeça no lugar.
Paulo M. era autoridade 24 horas por dia. Quando estava de folga, faça frio ou faça chuva, volta e meia era chamado, a qualquer hora do dia ou da noite, para resolver brigas de vizinhos ou de marido e mulher. Ia desarmado e botava respeito com seu vozeirão explosivo, chegava e resolvia só no plá.
Contra o comunismo, apesar de não entender direito nada sobre política, antipetista roxo, era a favor de Trump, Temer, Alckmin, Doria, Bolsonaro, Frota, a tropa toda e aderentes. Quando o prefeito mauricinho se uniu ao governador do Estado, Picolé de Chuchu, instaurando o macartismo e autorizando a violência policial, a perseguição implacável e institucionalizada aos coletivos de negros da periferia, aos vendedores ambulantes, aos moradores de rua, aos usuários da cracolândia, aos pichadores e grafiteiros, aos estudantes secundaristas, às meninas do movimento feminista, Paulo M. acatou de tal forma o desejo das autoridades que, apaixonadamente, despertou em si um ódio mortal de forma a não poupar porrada em menores e minorias.
Participou do Junho de 2013 junto à tropa de choque. Para ele o Movimento Catraca Livre, Black Blocs, punks anarquistas, universitários maconheiros são todos farinhas do mesmo saco. [E somos mesmo: anticapitalistas e contra a repressão. Não adianta, não nasci para ser carneirinho. Por isso canto em versos livres.] Quando estudantes secundaristas ocuparam mais de mil escolas no país em protesto contra os cortes do governo na educação pública; quando os secundas começaram a empunhar bandeiras e cartazes e a pichar nos muros das escolas FORA PM, Paulo ficou no veneno pra dar uma lição nessa molecada. Se pudesse tacava uma bomba. Não tinha conhecimento suficiente para analisar a conjuntura; recebia ordens e toda a informação vinha de bate e pronto do telejornal global. Não refletia. “Não gosto de pensar. Pensar dói a cabeça. Pra quê filosofia? Filósofo é louco e poeta é tudo bicha.” Ele dizia “biba”. “Essa molecada tem que estudar.” Não passava pela cabeça dele que era exatamente isso que os jovens estavam cobrando das autoridades e angariando apoio de vários setores da sociedade. Para isso ocupavam – e não “invadiam” – as escolas que por lei pertenciam a eles, para isso é que clamavam por um ensino de qualidade.
Apoiou o gigante pato amarelo de três mil reais do empresariado paulista em frente ao prédio da Fiesp. Achou lindas as bandanas verdes e amarelas e as famílias bonitas passeando pacificamente – o sorriso da sociedade – tremulando a bandeira nacional. Foi a única vez que foi aplaudido em serviço.
Paulo M. tinha o maior apreço pelo poder. Homens poderosos, tanto os heróis dos filmes de ação quanto os homens da vida real, aqueles que por onde passavam encontravam as portas abertas sem precisarem esticar as mãos. Homens públicos como políticos, empresários, juízes, promotores. Não gostava de artistas, mas reconhecia o poder que exerciam. Assim que um grupo de rock cantou “polícia para quem precisa” e um grupo de rap colocou a cereja no bolo com “polícia raça do caralho” passou a desconfiar dessa gente. O homem mais poderoso com quem tinha contato diário era o delegado, o Doutor Delegado. Sentia por ele um misto de respeito e inveja. “Quem mandou não estudar?!”, dizia para si mesmo. Seu sonho era se formar em Direito e um dia chegar a ministro da segurança pública. Ia ser linha dura, não ia dar moleza. Pipocavam idéias em sua cabeça e viva compartilhando-as com os colegas que não faziam comentários, mas o ouviam com todo respeito. Por isso continuava reproduzindo seu discurso, atirando “pérolas aos porcos”, “palavras ao vento”.
Lembra com saudosismo que o rito de passagem foi brincar de tiro ao alvo com cães vadios, cachorros de rua sarnentos, mais mortos do que vivos. Via os colegas de farda como um verdadeiro exército da Marvel avançando, sempre avante, sem titubeios, sem nunca recuar, com o único propósito de manter a ordem defendendo a honra da família, da igreja e do Estado. Ficava sempre em QAP em shows, saídas de casas noturnas, em estádios de futebol, manifestações e passeatas.
Membro de vários grupos no whats app – ele dizia zap zap – inclusive o da corporação onde compartilha com os colegas vídeos e fotos pornôs, de mulheres e adolescentes nuas, de bêbados, mendigos, travestis e prostitutas em situações tragicômicas, mulheres e adolescentes – ele chama de “novinhas” – sensualizando, vítimas de acidentes fatais e, para resumir, criminosos mortos durante ação policial. Enfim, estereótipos a parte, não é preciso pensar muito para conversar com um policial.
Gaba-se de possuir um Porsche marrom (?) que pertencia a um traficante morto durante uma troca de tiros. Após quase um ano no pátio da delegacia, o Dr. Delegado liberou para seu uso particular. Sobre o carro esporte repetia de boca cheia: “feito a pedido do Hitler”.
Paulo M. não fugia a regra: tinha o perfil do policial médio brasileiro, protótipo de uma das polícias que mais mata no país e no mundo.
Arma no coldre do lado esquerdo da cinta, gás de pimenta, cassetete do lado direito, nome de guerra no peito + o tipo sanguíneo, quepe impecável, coturno engraxado e cara fechada como Stallone Cobra ou o Exterminador do Futuro. Para ele, a população pobre, o civil, o cidadão comum, qualquer um deles podia ser um bandido em potencial.
Resumindo: tirando o que não prestava até que era boa pessoa. Pronto, falei e saí correndo. Só que não. Apresentada a persona principal, agora que você já sabe a quem me refiro, vamos aos fatos.
Primeiro QRU
Nos últimos seis meses ficou escalado na rua de maior movimento comercial da cidade e já tinha se familiarizado com boa parte dos comerciantes e dos ambulantes locais. Conhecia pelo menos de vista cada morador de rua – ele dizia “mendigo” – trombadinhas e a malandragem em geral. Isso não o impedia de reservar um tempo para paquerar aquela “loirona bunduda” – como ele mesmo definiu ao comentar com os parceiros –, caixa da loja de ferramentas. “Anelzão grosso no dedo: casada, mas não tá morta.” Durante uma batida policial, Paulo M. em meio a uma espécie de arrastão da lei, ao abordar Pato Morto, o líder dos camelôs, rolou com ele no chão tentando a muito custo algemá-lo. A equipe em apoio cercou o infeliz e golpeou-o com tanta borrachada e coturnada que o camelô parecia um pedaço de carne ambulante. Paulo M. acabou sendo acertado pelos dois lados e também revidando às cegas, sobrou até pra uma tiazinha que estava moscando por ali. Moeram o Pato Morto na pancada e os populares, presenciando a cena, revoltaram-se contra os policiais. “O cara é trabalhador! Deixa o cara trabalhar! Vão caçar bandido!” Para defender o parceiro que rolava no chão na tentativa de algemar o elemento, foi feito um cordão policial em torno dos dois. O povo sacou dos celulares e começou a filmar. “Bota no YouTube!” Para dispersar a multidão que se aglomerava para tumultuar ainda mais a situação, fizeram uso do gás de pimenta. Alguns transeuntes passaram mal, escorando-se nos postes, nas portas das lojas, nos muros e gradis, na banca de jornal, tossindo, soltando os bofes pela boca, de olhos vermelhos lacrimejantes, irritadiços. Atéquenfinalmente enfiaram o meliante na viatura, ligaram as sirenes e acelerando em meio à multidão que se acumulava na rua, avançaram a viatura contra os pedestres e saíram cantando pneus. A caminho da delegacia, deram vários “prestatenção” na orelha do Pato que já estava mais morto do que vivo, quase um zumbi, por conta de ter resistido à prisão. Em conversa com o Dr. Delega e mais dois investigadores, a portas fechadas, se acertaram: pagou um pau pros meganhas e foi liberado. Na semana seguinte, quando viu o Pato Morto, já apresentável, livre, leve e solto, ficou indignado. Desconfiava que devia ter rolado uma grana. E ele com aquele hematoma monstro no olho, não tirava os óculos escuros por nada. Depois que seu irmão, também polícia, morreu na mão de vagabundo, não perdoava, não dava boi pra ninguém. Ficou fulo da vida, defensor que era da honra da família, da igreja e do Estado.
Segundo QRU
“QAP!” – rrrrrrrrrrrrrrrrrr ssssssssssssssshhhhhhhhhhhhhhhh – “QTI do QTH, QSL?!”
Um dia de herói. Uma gestante se contorce, escorando uma mão no ponto de ônibus e apoiando a barriga baixa com a outra. A dupla conduz a mulher, de 30 a 40 anos, aparentemente, até a viatura, onde a enchem de perguntas de forma a tentar distraí-la até que cheguem ao hospital. Paulo M. avalia: “diarista… mãe de cinco filhos… um de cada pai… sexto a caminho… não tem certeza quem é o pai… mãe solteira… não tem onde cair morta… mas na hora de abrir as pernas…” – “aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!” – Não deu nem tempo: parto na viatura. – “Coméquié o seu nome, soldado?” – “Paulo”. – “Pois vai ser Paulinho!” – Ainda com a cria nas mãos, até se arrepiou e teve de se segurar para não chorar na frente do parceiro.
Último QRU
Liga a sirene, bota banca e pisa. Abre passagem entre os veículos em trânsito para dar tempo de filar aquela coxinha na padoca do Seu Joca. Dá um pulo no banheiro, enquanto seu parceiro o aguarda lá fora na viatura. Chacoalha o menino e sai sem lavar as mãos. Cumprimenta os colegas da base comunitária e, após uma ronda ostensiva, são deslocados para o mesmo QTH de praxe. Na postura, alinhado sobre os dois coturnos, de braços cruzados, com as mãos na cintura ou para trás, pescoçando cada jovem que lhe atraia os sentidos. Chegado numa superprodução americana, não resistiu e aceitou uns DVDs piratas do camelô. De quebrada “demorô, patrão!” ninguém ia ver. Moqueou em meio as suas coisas e já era. De repente cresceu os olhos numa lata de pêssego perdida entre os DVDs. Estava aberta e a tampa envolvida num plástico-filme. “Tá confiscada”, disse em tom galhofeiro. O ambulante tentou argumentar, mas o tira já tinha aberto a lata e lambuzado os dedos no pêssego em caldas. Agora é tarde. Depois que Paulo M. saiu, ao ver seu parceiro, cheio de remorsos o ambulante desabafou: “poxa vida, patrão, o seu parceiro” e ele do alto da sua arrogância oficial: “o que tem ele?” O vendedor ambulante: “não deu nem tempo de avisar, o seu Paulo já foi metendo o dedo na lata de pêssego… era do colega mão branca que trabalha naquela loja ali ó… foi difícil explicar pra ele que… o ronda já tinha confiscado a lata… daí ele começou a rir e eu sem entender… é que ele tava saindo com uma vendedora da loja e ela tinha umas fantasias… o mão branca enfiava o pau na lata de pêssego e dava pra ela chupar, depois enfiava de novo… pediu pr’eu segurar a lata pra ele e…” No mesmo dia, todo mundo da corporação ficou sabendo e pelo Nextel, pelo whats, logo a história do pêssego vazou para todo o território nacional. Paulo M. caiu na boca do povo. Fizeram uns desenhos na porta do banheiro da corporação da lata de pêssego com o “trem” mergulhado com a inscrição “qué pêssego, Paulão?” Se você visse a cara dele quando alguém perguntava na hora do almoço “quê que tem de sobremesa – pêssego em calda?” Vixe! Ficava louco! Então primeiro se calou, depois se isolou. Não tinha mais boca para nada, quase um monge budista. Passados uns meses nessa, abandonou de vez a corporação, aceitou Jesus, virou pastor de uma igreja doida e nunca mais foi o mesmo.
*Andri Carvão é poeta, artista plástico e graduando em Letras pela Universidade de São Paulo.