por João Paulo Moreto*
Todas as noites Rod aparecia no mesmo horário, no começo do escurecer. Se aproximava mudo e se juntava a nós, na roda. Era o único que não fumava. Aquela era a terceira noite seguida que o filho da puta vinha com aquela história. Tirava o 32 da blusa, a bala já estava em sua mão, ele dava um beijo nela e colocava-a sozinha no tambor.
– Esse arrombado quer morrer, disse o Bacurau.
Eu não dizia nada, mas estava aflito até a tampa. O olhar do Bacurau transmitia sabedoria.
Rod colocou a arma no céu da boca. Engoli seco. Girou o tambor até parar. Apertou o gatilho sem hesitar.
A arma não disparou, era uma chance em cinco.
Suspirei aliviado.
– Essa você já passou ontem, Rod, disse Batatinha, com aquele riso de dentes podres. Era um tremendo vigarista. A noite era fria. Os homens também. Sapo deu um trago profundo, prendeu o máximo que pôde e soltou, relaxado na cadeira. Me passou o beck olhando para um ponto nulo no teto. Parecia um saco de cenoura, e um saco pela metade. Rod colocou a segunda bala no tambor. Me perguntei quem limparia o chão sujo de sangue e miolo se aquela porra desse errado. Traguei, ele apertou o gatilho. Nada. Soltei o ar.
Batatinha gargalhou como uma bruxa nos filmes infantis.
– Você é um desgraçado, gritava. Vaso ruim não quebra.
Meu desejo era pegar a arma do Bacurau e descarregar na cabeça daquele traste até que o tambor encontrasse o eixo certo e fizesse calar aquele riso. Ninguém daria falta dele, pensei… Ninguém daria falta de nenhum de nós naquela espelunca. Vermes fedidos com subempregos, facilmente substituíveis.
– Não abuse da sorte, Rod. Uma hora…
– O que é a sorte, Sapo? Questionou Bacurau. Qualquer que for o resultado é azar.
Rod não dizia nada. Meteu a mão dentro da blusa e tirou mais uma bala. Eu me ajeitei na cadeira, aflito. O fumo permanecia em minha mão, mas ninguém se deu conta. Batatinha falou com riso de demônio:
– Deixa eu apertar, vai?!
Ele fingia calma. Duvido que teria coragem de puxar o gatilho, era um maricas desgraçado. Eu queria entender tudo aquilo…
Rod enfiou a arma na boca e apertou com uma velocidade extrema e dessa vez fez um estalo que eu cheguei a pensar que o tiro tinha saído. Saltei na cadeira, Sapo tremeu segurando a cadeira com as duas mãos, as pernas juntas. O Batatinha não piscou e Rod permaneceu com o cano da 32 na boca por alguns segundos, os olhos abertos. Aquele filho da puta morreria de olho aberto.
Ficaram todos em silêncio por um instante, até que aquela boca amarela soltou uma gargalhada estridente e, então, voltamos a realidade.
Que merda.
– Você é um imbecil, disse Batatinha. Devia fazer isso em praça pública e cobrar da plateia. Ficaria rico e poderia comprar um mesclado decente pra gente, não esta merda aqui que estamos fumando.
– Pode creeê, emendou o Sapo.
Eu soltei um suspiro de alívio e comentei alguma coisa rindo. Fiquei aliviado. No fundo eu gostava do Rod, apesar de quase nunca tê-lo ouvido falar. Gostava de todos, ali. Até do lixo do Batatinha. Éramos todos pessoas fodidas, com um passado tão sombrio que nunca sequer fazíamos perguntas um para o outro. Homens sem famílias, sem passado, invisíveis. A vida e a morte pareciam a mesma coisa, então andávamos em corda bamba no vale das sombras sem equipamento de segurança. Às vezes eu chegava a conclusão que se algum de nós tivesse uma faísca de vida dentro de si, provavelmente este cometeria suicídio. A vida era podre e sem graça, então a gente improvisava.
Rod enfiou a mão na blusa de novo e todos se calaram. Tinha uma quarta bala.
Não aguentei, levantei da cadeira.
– Cara, não! Você vai morrer nessa porra.
– Você não precisa provar nada para ninguém, ajudou o Sapo.
Bacurau estava de cabeça baixa. Eu olhava para todos, aflito, a procura de algum olhar que me ajudasse.
Homens desprezíveis.
Aquilo era um jogo e o desgraçado iria até o fim. Estávamos chapados e eu não conseguia raciocinar. Queria estar sóbrio. O único sóbrio era o próprio Rod e ele estava prestes a colocar uma quarta bala num tambor com cinco eixos e atirar em sua própria cabeça. Me deu vontade de vomitar. Olhei para o Sapo e para o Bacurau, ninguém dizia nada. Batatinha resmungou:
– Ele é homem, sabe o que faz.
Meu sangue ferveu.
– Cala tua boca, teu arrombado, senão é teu miolo que eu vou varrer aqui nesse chão, hoje.
– Mede tuas palavras, seu bicha, que se ameaçar um homem tem que matar.
Eu iria pra cima dele, mas Rod abriu o tambor e colocou a quarta bala. Isso fez com que nos calássemos.
– Tá indo longe demais, Rod.
Que merda era tudo aquilo? Éramos homens imprestáveis e tristes e tínhamos que provar o que quer que fosse para que a vida fizesse sentido. Olhei para aquele cenário, nós cinco naquela sala imunda, alterando a ordem natural do mundo. Pela primeira vez não senti pena de nós. Éramos grandes. Todos os outros homens estavam em suas casas, quentes, tomando sua cerveja, fazendo as contas do mês, procurando uma faísca de vida. Estavam mortos. Nós também estávamos mortos, mas ao menos nós sabíamos disso. Era essa nossa distinção. Mas qual o limite da honra? E qual o limite da miséria?
Eu vi Rod acariciar aquela bala com intimidade. Ele iria fazer aquilo. Era um homem de respeito e não temia porra nenhuma. Nós nos entreolhávamos sem nada falar, e nem havia o que ser dito. Eu estava congelado. Oitenta por cento de chance de ele morrer. Qual a chance? E além: o que fazer com isso? Que vitória isso traria? Os olhares deles não me confortavam. Somente Bacurau não alterava sua expressão. Nunca saquei esse cara. Devia ser ainda mais frio que nós.
Ele girou o tambor. Fechou. Todos olhávamos para Rod como se ele fosse uma espécie de semideus. Ele iria onde nem mesmo nós teríamos coragem de ir. Eu já o via morto. Enfiou a arma dentro da boca. Vi ele olhar pro céu, pela primeira vez. Sua boca meio que sussurrou alguma coisa, parece que rezava. Ele ia apertar. PORRA!!!
Senti meu corpo flutuar. Pela primeira vez os cinco estavam de olhos fechados. O silêncio era surreal, eu ouvia as batidas do meu coração. Ele tinha apertado o gatilho e a bala não tinha saído. Como isso é possível? Quando demos conta disso começamos a gritar e a rir como maníacos. Abracei Sapo com toda a força e acho que não abraçava ninguém há alguns anos. O Batatinha estava de joelhos e batia no chão com as duas mãos berrando “esse cara é imortal, esse cara é imortal”.
Bati na cabeça do Bacurau que permanecia mudo e estático e disse:
– Deixa de ser rançoso há há há. Não é capaz de sorrir, nunca?
Aquilo foi incrível, queria ter amigos de verdade para poder pagar uma cerveja em algum boteco sujo e contar o acontecido. Ninguém iria acreditar.
A essa altura o mesclado já tinha apagado sem que déssemos conta. Reacendi e traguei e ele parecia delicioso. O Batatinha fazia alguma dança estranha, ainda dizendo que o Rod era imortal. O Sapo ainda não tinha conseguido parar de rir, se bem que acho que nesse momento ele já nem se lembrava do que ria. Éramos os maiores dos maiores e o mundo era pouco para nós. Pensei na tristeza que seria uma vida de teatros e cinemas com assentos confortáveis e blazers aveludados. Pensei em escrever um poema. Um poema com final feliz.
Mas algo no olhar do Bacurau me chamou atenção. Ele não estava contente. Olhava seriamente para Rod e parece que notei um início de lágrima em seu olhar. Voltei os olhos para o Rod que permanecia sentado na cadeira. Rod olhava para algum lugar, mas o que ele olhava não estava ali. Olhava para além de qualquer coisa que pudéssemos ver, para além de qualquer compreensão nossa. Cheguei a pensar que não olhava com os olhos. Me senti triste ao vê-lo abatido daquela forma. Talvez nenhuma vitória fosse suficiente para ele, em função de todas as derrotas que a vida havia trazido. Foi um baque.
Alguma brisa mais gelada entrou pelo vitro daquela sala nojenta com homens pouco humanos. Repugnantes. Foi quando percebi que Rod estava com o tambor da arma novamente aberto. Em sua outra mão havia ainda mais uma bala, a quinta, para o quinto eixo. Todos completos agora. Dessa vez ele não precisaria sequer girar o tambor. Ele olhava para o céu e sussurrava. Eu olhei para o Bacurau e seu olhar era o de quem sabia demais da vida.
*João Paulo Moreto é natural de Campinas (SP). E-mail: jpimenta@unicamp.br
Muito bom mesmo seu site. Deveria ter mais sites assim. Abraço e boa semana