por Mariana Luppi*
Marielle Franco, vereadora eleita em 2016 com quase 50 mil votos na cidade do Rio de Janeiro foi executada a tiros na noite do dia 14 de março. Marielle era filiada a um partido socialista, tinha histórico de luta nas pautas de direitos humanos, da negritude, das mulheres e das LGBTs – começou sua militância após perder uma amiga do cursinho popular que frequentou, devido a uma bala perdida em confronto entre traficantes e policiais no complexo da Maré, onde Marielle cresceu.
Não resta dúvida de que se tratou de um crime encomendado, que visava apavorar e silenciar todos aquelas e aqueles que todos os dias gritam contra a opressão e contra o capital.
Na semana posterior a sua morte dezenas de milhares de pessoas estiveram nas ruas em diversas cidades do país exigindo justiça e lembrando de sua luta contra a intervenção no Rio de Janeiro e contra o genocídio da população negra. Um mês depois de sua morte, atos e atividades ainda encheram as ruas de pessoas que aguardam resposta sobre os responsáveis pela execução.
Mas não nos silenciamos. O que de melhor podemos fazer pela memória de Marielle é lembrar pelo que ela lutava. Entre as muitas pautas que sintetiza em sua figura política, vale ressaltar o combate ferrenho à guerra às drogas e ao genocídio da população negra:
O que chamamos de guerra às drogas tem suas bases principalmente na América Latina e inicia-se justamente após o desmonte das ditaduras que controlavam a região, com o apoio dos países imperialistas, desde a meados do século XX. É um projeto internacional, imperialista, que incide sobre cada território da América Latina de forma específica – mas que não deixa de ser guerra por isso, guerra civil, guerra de extermínio contra uma parcela da população, no caso do Brasil particularmente a população negra. A guerra sempre foi necessária para a sustentação do capital. A destruição das forças produtivas e a indústria armamentista e bélica em geral são importantes para o consumo de excedentes, e para compensar a queda da taxa de lucro – tendência sempre presente no capitalismo. Além disso, o discurso do “inimigo” é bastante útil para o desvio do conflito ideológico entre as classes. Nesse sentido, tanto a guerra ao terror quanto a guerra às drogas são guerras imperialistas, de controle de territórios e mercados, que garantem a manutenção de populações marginalizadas no exército de reserva global.
No entanto o genocídio da população negra no Brasil não se restringe a guerra às drogas. Trata-se de um processo secular de extermínio e marginalização que encontra em cada época histórica uma “justificativa”, que atualmente é o combate ao narcotráfico. O sequestro, comercialização e escravização dos povos africanos – em conjunto com a escravização dos povos originários americanos – teve papel fundamental na acumulação primitiva do capital a nível mundial. Ou, o que é o mesmo: não existiria capital sem a escravidão negra (como também não existiria capital sem o trabalho gratuito das mulheres em casa.). Da mesma forma, o racismo garante hoje para o capital uma permanente reserva de trabalhadores “mais baratos”, o que permite a superexploração e ainda rebaixa salários da classe trabalhadora como um todo. Nesse sentido, por mais que o movimento negro por exemplo possa assumir características identitárias em alguns contextos – e não há problema nenhum que assuma, trata-se da identidade enquanto oprimidos inclusive – a luta antirracista é uma luta estruturalmente anticapitalista. A população negra não é morta porque é associada com o tráfico e a criminalidade, ela é associada com o tráfico e a criminalidade para ser morta.
A percepção desses elementos é importante para não recairmos em narrativas que associam o genocídio da população negra com algum fechamento do regime ou avanço conservador, a qualquer momento. Embora tal fechamento de fato exista, possa contribuir para a perseguição de líderes populares, e deva ser visto como um dos fatores especificamente para a morte de Marielle, ele não é necessário para as mortes de negros pobres nas periferias – no máximo um maior armamento e poder das forças repressivas pode facilitar essas tendências. Aliás, todo o período da nova república, com sua constituição cidadã, pode ser, sem dúvida, batizada de era das chacinas[1]:
Massacre de Volta Redonda (1988); Massacre do 42º DP – Pq. São Lucas (1989); Chacina de Acari (1990); de Matupá (1991); Massacre do Carandiru (1992); Chacina da Candelária e Chacina de Vigário Geral (1993); Alto da Bondade (1994); Massacre de Corumbiara e Nova Brasília (1995); Massacre de Eldorado dos Carajás (1996); Morro do Turano, São Gonçalo e da Favela Naval (1997); Alhandra e Maracanã (1998); Cavalaria e Vila Prudente (1999); Jacareí (2000); Caraguatatuba (2001); Castelinho, Jd. Presidente Dutra e Urso Branco (2002); Amarelinho, Via Show e Borel (2003); Unaí, Caju, Praça da Sé e Felisburgo (2004); Chacina da Baixada Fluminense (2005); Crimes de Maio (2006); Complexo do Alemão e Tortura de Bauru (2007); Morro da Providência (2008); Canabrava (2009); Vitória da Conquista e os Crimes de Abril na Baixada Santista (2010); Praia Grande (2011); Massacre do Pinheirinho, de Saramandaia, da Aldeia Teles Pires, os Crimes de junho, julho, agosto, setembro, outubro, novembro, dezembro (2012); Chacina do Jardim Rosana, Repressão à Revolta da Catraca, Vila Funerária, Chacina da Maré, Itacaré, ONDE ESTÁ Amarildo?, Por que o senhor atirou em mim?, MC Daleste, Quem MATOU Ricardo? (2013); Massacre de Pedrinhas, Chacina de Campinas, Sapopemba, Chacina do Morro do Juramento, Somos Todas Cláudias, DG Bonde da Madrugada, Pq. Belém, Sorocaba, Morro da Quitanda, Favela Novo México, Memória de Lua Barbosa, Chacina de Belém-PA, #QuemMatouBrunoRocha?, Cadê Davi Fiúza?, Chacina de Mogi das Cruzes, Execução do Jd. Ibirapuera (Thiago Vieira da Silva), Chacina de Duque de Caxias-RJ, Caso Ruzivel Alencar (2014); a Chacina de Betim, Execução do Pequeno Patrick, Chacina do Limoeiro, Massacre da Cabula, novas chacinas de Mogi das Cruzes, a Chacina da C D PAVILHÃO NOVE, as chacinas em série de Manaus-AM, e as recentes Chacinas de Osasco e Barueri (2015).
É porque ainda vivemos na era das chacinas que hoje não temos mais Marielle entre nós. Mas como a primavera, a resistência de Marielle floresce hoje em milhares de corações e mentes que não ficarão assistindo inertes o sistema econômico injusto continuar a nos matar.
*Mariana Luppi, comunista desde os 14 anos, atualmente militante feminista e ecossocialista, formou-se em filosofia e hoje escreve, estuda e milita nos intervalos do seu trabalho burocrático kafkiano.
[1] Conforme levantamento das mães de maio.