Ataques ao espaço humanitário

por Konrad Rahal*


Fotografia em destaque: Refugiados sírios e iraquianos, vindos da Turquia, chegam às águas costeiras da ilha grega de Lesbos, após atravessarem parte do Mar Egeu, 2015. Por Ggia.

O refúgio, enquanto mecanismo de proteção internacional de pessoas perseguidas por motivos políticos, religiosos, étnicos ou vítimas de conflitos e situações de grave violação de direitos humanos, foi fundamentado na Convenção de 1951, relativa ao Estatuto dos Refugiados, que o estabelece como instrumento que garante um espaço de proteção estatal.
Recentemente, União Europeia e Turquia assinaram um acordo que permite, mediante torta justificativa legal do bloco, a devolução para a Turquia de refugiados e solicitantes de asilo, que chegam ao território europeu, vindos de terras turcas. Tal acordo se coloca em conflito direto com todo o regime legal em que se baseia o refúgio, que possui no princípio da não devolução um elemento fundamental.
Princípios gerais de direito internacional, como o anteriormente citado non-refoulment (não devolução), de observação obrigatória, são desrespeitados com base em frágil argumentação jurídica, como a de primeiro país seguro, para se livrar do cumprimento de uma norma obrigatória. Assim, garantias como o direito ao refúgio, à ampla defesa e à assistência legal são ignorados. Da mesma forma, são desconsiderados os princípios da unidade familiar e do melhor interesse da criança.
Desde que a União Europeia iniciou os primeiros procedimentos de devolução de refugiados e solicitantes de asilo para a Turquia, no começo de abril, o bloco declarou oficialmente que não é um espaço de acolhida humanitária. A Europa fecha suas portas à refugiados que arriscaram as suas próprias vidas e as de seus entes mais queridos através de uma jornada rumo ao desconhecido no Mar Mediterrâneo, na maioria das vezes em botes infláveis ou embarcações precárias. Muros e cercas de concertina e arame farpado voltam a fazer parte da paisagem na Europa. Agora, os muros que separam Estados Unidos da América e México – sim, Donald Trump, esse muro já existe; pode excluir esse ponto de sua retórica racista e xenófoba – Faixa de Gaza e Israel e Egito, Arábia Saudita e Iêmen, Marrocos e Mauritânia, ganham a companhia de Hungria, Eslováquia e Bulgária, entre outros que estão sendo erguidos enquanto escrevo.
Os países do Norte se posicionam, deixando claro que o seu espaço é para certa categoria de pessoas, muito bem definida, que não parece incluir árabes, africanos, muçulmanos e outros grupos sociais do Sul. Tirando as reações isoladas de organizações humanitárias e de direitos humanos, a implementação do acordo que legitima essa lógica, de exclusão e negação da solidariedade humanitária, tem uma estranha aparência de normalidade, que passa despercebida em meio a um mundo em convulsão.

No momento em que o Norte começa a sentir alguns efeitos colaterais dos conflitos, que são agravados por suas próprias ações intervencionistas bélicas desastrosas – seja mediante à venda de armamento ou do envio de tropas –, a resposta é rápida e cruel: o fechamento do espaço humanitário.

Parecemos ignorar sem maiores constrangimentos a realidade de que vivemos em um mundo que está em guerra. Por um lado, antigos e sangrentos conflitos, que pareciam resolvidos, ressurgem com força, como na Somália ou na República Democrática do Congo; por outro lado, novos conflitos devastadores ceifam a vida de um enorme e inaceitável número de pessoas, como no Iêmen e na Síria. Nestes dois casos, com a contribuição entusiasmada de países como Estados Unidos, França, Rússia e Arábia Saudita por meio de campanhas de bombardeamento que pretensamente atingem alvos terroristas, quando na realidade produzem um número calamitoso de vítimas. No momento em que o Norte começa a sentir alguns efeitos colaterais dos conflitos, que são agravados por suas próprias ações intervencionistas bélicas desastrosas – seja mediante à venda de armamento ou do envio de tropas –, a resposta é rápida e cruel: o fechamento do espaço humanitário. Os refugiados, então, passam rapidamente de vítimas a inimigos.

Imigrantes refugiados são detidos em penitenciária na vila de Fylakio, em Evros (Grécia), 2010. Por Ggia.
Imigrantes refugiados são detidos em penitenciária na vila de Fylakio, em Evros (Grécia), 2010.
Por Ggia.

O aumento no número de refugiados e solicitantes de asilo no continente europeu provocou uma reação negativa em cadeia na maioria dos países do Norte, que rapidamente optaram pelo fechamento de fronteiras. Exceção surpreendente ao governo de Angela Merkel, que até certo ponto resistiu como o único país a deixar as fronteiras abertas. Porém, após os reveses nas urnas em eleições regionais, numa Europa que perigosamente flerta com o fascismo, a “boa vontade” da Alemanha parece não ter mais tanta força. O fechamento de fronteiras se seguiu a uma série de pronunciamentos alarmistas de políticos de extrema direita. Da Europa aos Estados Unidos a retórica que mistura racismo, xenofobia e fascismo ganha força. A percepção popular, que num primeiro momento parecia ser simpática aos refugiados, é alimentada diariamente por uma falsa ideia de que a Europa está sofrendo uma “invasão”, como fez questão de colocar o ex-primeiro-ministro inglês David Cameron.

Leia a entrevista, em inglês, de David Cameron, ex-primeiro ministro do Reino Unido, para o jornal The Guardian: Calais crisis: Cameron condemned for ‘dehumanising’ description of migrants.

Ao contrário do que um leigo possa pensar ao se informar pela grande mídia, não são Alemanha, Grécia ou Estados Unidos os países que recebem o maior número de refugiados e refugiadas no mundo. Este papel cabe à Turquia, que recebeu mais de 2 milhões de pessoas em 2015, seguida por Paquistão, Líbano, Irã, Etiópia e Jordânia.
O que está em risco neste cenário é o conceito de humanidade, frontalmente atacado. São ataques que castigam o espaço humanitário e nos colocam em uma posição de repensar concepções de solidariedade. Que o Sul enfrente o Norte por meio de uma resposta positiva, fundada na cooperação entre os povos.

Para conhecer: Podcast Projeto Humanos, segunda temporada, por Ivan Mizanzuk

*Konrad Rahal é advogado e mestre em direito internacional dos refugiados.

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