Filosofia: substantivo comum. De dois gêneros?

Reprodução da pintura com o retrato de Harriet Taylor Mill. Ela é retratada até a altura da cintura, com um vestido amarelo, com mangas bufantes, a da esquerda preta e a da direita branca. Tem um pingente no pescoço e um discreto cordão com uma pequena pedra na cabeça.
Foto: National Portrait Gallery, domínio público, via Wikimedia Commons

Legenda: Harriet Mill (c. 1834), de artista desconhecido (óleo sobre tela de 60,3 cm x 48,9 cm). Pintura dada à National Portrait Gallery, Londres (Reino Unido), em 1982.


por Carlos Zanchetta*

Como ocorreu nas ciências de modo geral, também na Filosofia as mulheres frequentemente viveram à sombra dos homens. Porém, mesmo sem o devido reconhecimento, elas tiveram grande importância na construção do pensamento filosófico, desde seu surgimento na Grécia.

Epicuro aceita mulheres em condições de igualdade com os homens em sua escola, o Jardim, no século IV a.c., mas só no final do século XX começa a se desconstruir a fama de servas sexuais que a história platônica lhes impôs. ​Aspasia de Mileto e Diotima de Mantineia, do século V, foram mestras de Sócrates, e, exceto por breves referências de Platão, pouco se lê dessas “mães da Filosofia”. A mãe do próprio Platão teria integrado a escola pitagórica, e também sobre ela pouco se sabe. A difamação e o apagamento eram sinas comuns a mulheres que ousaram considerar a filosofia um território comum de dois gêneros.

Mas há casos de mulheres da Antiguidade grega que deixaram marcas perenes na história intelectual, como a filósofa, matemática e astrônoma Hipátia, do mesmo século, a primeira mulher a lecionar na Academia de Alexandria; a poetisa Safo, que no século VII a.C. fundou uma escola de formação para mulheres na ilha de Lesbos conhecida até os dias de hoje.

Na Idade Média, para destacar um só nome, Hildegarda de Bingen: mística, escritora, teóloga e filósofa do século XII, sobressaiu-se em áreas em que atuavam quase exclusivamente clérigos homens.

Na perspectiva de hoje, alguns filósofos foram claramente preconceituosos em suas ideias e declarações sobre o sexo oposto. Aristóteles associava o feminino ao que é inferior e fraco, e o masculino, ao que é forte e superior. Descartes seguiu o mesmo caminho na categorização dos seres humanos e suas qualidades, em que pese ter preferido dialogar sobre sua obra com uma mulher. Kant não dosou preconceito e sarcasmo ao afirmar que quem tivesse interesse pela Filosofia deveria ter barba. E finalmente Nietzsche, que, em Para além do bem e do mal, sustentou que as preocupações das mulheres são com a beleza e a aparência, nunca com a verdade.

Por mais inaceitável que se possa considerar a misoginia manifestada por esses pensadores, não se pode julgá-los com as lentes do presente, sob o risco de se cometer anacronismo. De fato, se para diversos filósofos a mulher era tida como inferior pela sua própria natureza, tal concepção não era exclusiva da universidade nem do círculo dos filósofos. Em muitos outros setores da sociedade, a mulher era considerada um ser subordinado ao homem e dele dependente. Os filósofos reproduziam o preconceito e a desigualdade que foram naturalizados pela sociedade durante séculos.

Apenas com a Revolução Francesa passou-se a considerar todos os cidadãos, homens e mulheres, como iguais em direitos, ao menos formalmente. De lá para cá, as mudanças rumo à igualdade têm ocorrido, mas com lentidão, e há muito a se trilhar ainda. No Brasil, até 1962, a mulher não podia exercer uma profissão fora de sua residência sem a autorização do marido.

Alguns filósofos reconheciam as mulheres como iguais no meio intelectual, em que pese o fato de que “reconhecer a mulher” corresponda a “ter a aprovação do homem”. O já citado Platão, ao destacar o papel de Diotima e Aspasia na Filosofia nascente, é um exemplo.  Descartes, no século XVII, também: sua interlocutora preferida era uma mulher, a princesa da Boêmia Elisabeth van Pallandt. Diderot, fiel a seu tempo, não discordava que a mulher fosse naturalmente inferior ao homem, mas expôs a opressão feminina pela família e pela religião em seu Ensaio sobre o caráter, os costumes e o espírito das mulheres nos diferentes séculos (1772). E, em tempos mais recentes, John Stuart Mill, no século XIX, denunciou abertamente o preconceito contra as mulheres em sua obra A sujeição das mulheres, com toda a aprovação de sua esposa, Harriet Taylor Mill, filósofa e defensora das causas feministas.

Há uma base de comparação, doméstica e atual, que ilustra como o mundo da Filosofia é predominantemente masculino, quase um “clube do Bolinha”: uma das coleções mais tradicionais de textos filosóficos, Os pensadores, publicada em 52 volumes no Brasil a partir de 1973, não tem um único título dedicado a uma filósofa!

Mesmo que em número reduzido, importantes filósofas despontaram na contemporaneidade. A luta contra a opressão e a dominação parece ser um tema recorrente na obra dessas pensadoras. No século XX, Hanna Arendt, nascida em território da atual Alemanha e naturalizada norte-americana, destacou-se pela escrita corajosa contra os regimes totalitários, em obras como As origens do totalitarismo e Eichmann em Jerusalém, e pela reflexão filosófica em A condição humana e A vida do espírito. A francesa Simone Weil, depois de completar sua formação acadêmica na École Normale Supérieure, à época um ambiente quase exclusivamente masculino, tornou-se professora e militante operária. Reflexões sobre as causas da liberdade e da opressão social é sua principal obra filosófica.

Diversas filósofas dedicaram-se a pensar o feminismo: a francesa Simone de Beauvoir, com o seu O segundo sexo, inaugurou alguns de seus fundamentos. Já a búlgara Julia Kristeva desenvolveu uma crítica ao movimento.

Atualmente, as tecnologias digitais têm democratizado os meios de veiculação do pensamento filosófico e o acesso a ele, expandindo-o para além dos muros da academia e do mercado de livros. Mulheres dedicadas à atividade filosófica têm sabido se valer dessas tecnologias para divulgar  e debater ideias autonomamente em sites, blogs e podcasts, como o site Rede Brasileira de Mulheres Filósofas, que reúne alunas, pesquisadoras e docentes de Filosofia, e o blog português Mulheres na Filosofia, sobre filósofas e feministas, ambos surgidos em 2018.

As infovias podem ser um caminho promissor para que as mulheres ampliem cada vez mais seu espaço na seara da Filosofia. E é ela que vai se enriquecer com a multiplicidade de olhares, se souber abrir mão dos vieses e das prerrogativas de um gênero.

*Carlos Zanchetta é mestrando em Educação pela Universidade de Lisboa, licenciado e bacharel em Filosofia pela Universidade de São Paulo e possui especialização em Ciências Humanas (Letras e História) pelo Centro de Extensão Universitária.

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