Galeto

Imagem em preto e branco de dois galináceos, em pé, numa cerca.


por Renato Malkov*


Destrinchava. Dedo indicador no osso que divide o peito. A faca descia rente, contornando a carcaça. Um pouco de força e o osso da sobrecoxa rompia o tecido, desprendendo-se. Na asa, a mesma força, o estalo, e o osso surgia. Ponta de faca na carne fina, despindo os ossos miúdos. Repetia o processo do lado esquerdo. Osso, faca, osso, carne, direito e esquerdo.

A cozinha do restaurante era quente e apertada. Ele com seu rosto magro, nariz pontudo, olhos saltados e lábios secos. Uns braços finos que escorriam dos ombros, a barriga murcha. Quadril e pernas tortas. Um pênis entre as pernas. Nádegas. Osso, carne, direito e esquerdo. Não tinha asas. Cabia bem ali no canto, como em um poleiro.

Alcançara o ápice da técnica no serviço que prestava e mal era visto pelos colegas enquanto trabalhava. Tinha destreza e era perfeccionista. Saíam todos iguais, não importava a quantidade de pratos que o chef precisava preparar. Galetos perfeitamente desossados. Com o salário que ganhava, equilibrara todas as contas da casa. Era amado pela mulher que o acompanhava e repetia-se a cada dia como se fosse ontem. Passava a vida morno e suas febres não alcançavam os 38 graus Celsius. Não arriscava um piu.

Apelidaram-no Galeto. Galeto via cada ser que destrinchava e sentia seu gosto cru na língua. Fisionomia de ave, porte de ave, pele de ave, gosto de ave. Revestido e entranhado de cada carcaça desossada, sentia-se parte daquilo que fazia. Galeto que destrinchava galetos. Até no sinal da cruz encenado frente às capelas que encontrava no caminho imitava os movimentos que a faca religiosamente percorria.

A mulher de Galeto era corpulenta. Ele, por baixo, penetrava-a. Contornou seu seio com os longos dedos, depois desceu-os pelas costelas e percorreu o caminho suado do corpo da mulher até pousar a mão em sua coxa grossa e forte. Apertou. Subiu de novo a mão e apertou seu ombro. Repetiu o processo do lado esquerdo. Osso, carne, direito, esquerdo. Gozo.

Enquanto a mulher suspirava na cama, ele se ergueu e confrontou o espelho. Minutos de absoluta quietude. Observava a si mesmo. Galeto.

– Volta pra cama, meu amor. O que tá fazendo aí?

Sem tirar os olhos do espelho, alcançou a faca trazida na bolsa. Tocou o esterno e passou a faca contornando as costelas. O sangue escorria. Chegou até o próprio quadril e ia contornar a virilha quando a mulher ouviu os pingos grossos caindo no chão e ergueu os olhos para ver a lâmina refletida no espelho. Gritos. Galeto, pálido, disse estar trabalhando. Pediu carinhosamente à mulher que não o interrompesse. Ela o agarrou e arrancou a faca de sua mão. O sangue vermelho vibrava no chão. O produto mais vivo de Galeto em toda a sua existência. Olhou novamente o espelho e disse:

– Querida, me devolve a faca. Sei que é sensível, mas com o tempo a gente adormece. Nem sente mais. Galeto se prepara assim mesmo…

E caiu. Osso, carne, direito, esquerdo e sangue. Sem asas.

*Renato Malkov é graduado em Psicologia pela Universidade de São Paulo e editor de livros didáticos.

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