por Mariana Luppi* e Ana Paula Girardi**
As tentativas de inserir um debate sobre gênero nos mais diversos contextos, ou mesmo a simples menção à palavra “gênero”, têm sido duramente atacadas pelos setores reacionários da sociedade. Desde a censura a exposições de arte que possuem essa temática até discutir gênero e sexualidade na escola, ou mesmo a mera participação da Judith Butler (1956-), filósofa conhecida por sua teoria sobre gênero, num seminário sobre democracia – tudo tem sido combatido por meio de mentiras, distorções e violência.
Já em alguns espaços de esquerda, algumas vezes o debate sobre gênero (assim como o de sexualidade e raça, por exemplo) é acusado de ser pauta “parasitária”, visto que a exploração dentro do sistema capitalista se dá entre as diferentes classes sociais.
As russas há um século perceberam que não era possível o capitalismo garantir seus direitos.
Em outubro deste ano, a Revolução Russa completou cem anos e, ao olharmos para os eventos iniciais do processo revolucionário, percebemos que o papel das mulheres e sua presença na luta foi fundamental na determinação dos eventos futuros. As russas há um século perceberam que não era possível o capitalismo garantir seus direitos. Elas compreenderam a relação entre a exploração de classe e a opressão de gênero. Olhar com atenção para a relação entre exploração e opressão dentro do sistema capitalista nos permite compreender o ataque que sofremos ao tentarmos discutir gênero.
Antes de pensarmos sobre opressão e exploração, cabe nos perguntarmos se somos todos iguais e pensarmos o sentido da noção de “igualdade”, que se opõe tanto à “diferença” quanto à “desigualdade”. Diferenças existem entre todos os seres (e entre todos os indivíduos humanos) em diversos âmbitos e em qualquer momento da história. Nesse sentido, duas mulheres podem ser diferentes em mais aspectos do que um homem e uma mulher. Ocorre que diferenças específicas se transformam em desigualdade quando entende-se socialmente que essas diferenças definem a inferioridade de um grupo em relação a outro e, portanto, que esse grupo “inferior” deve ter menos direitos. É o que acontece historicamente com as mulheres e acontece também com outros grupos – pessoas negras, estrangeiras e homossexuais, por exemplo.
Quando se discute as diferenças entre os indivíduos, é comum a acusação de se querer acabar com as diferenças, padronizar costumes e gostos de forma autoritária. Só que esse nunca foi o sentido da luta pela igualdade. Se luta contra a desigualdade porque ela é a forma de manifestação de um sistema econômico injusto – e, nesse sentido, não se trata apenas de desigualdade na distribuição de renda (que, de fato, leva à denegação de direitos básicos, como alimentação e moradia), mas também de desigualdades na divisão do trabalho, na representação política e no acesso aos mais diversos direitos (educação, saúde, cultura).
Se as diferenças entre os indivíduos podem ter origens tanto na natureza quanto na sociedade e na história, sendo determinadas por múltiplos elementos, a desigualdade tem origem em relações sociais específicas e historicamente limitadas.
A exploração do trabalho humano é uma dessas relações, e depende de um setor da sociedade, uma classe específica, ter a propriedade dos meios de produção – tudo aquilo que é necessário para produzir o que precisamos para sobreviver: a terra, as fábricas, as máquinas, os meios de transportes. Em outras épocas históricas não havia tal setor proprietário, fosse porque os meios de produção eram comuns, fosse porque cada indivíduo ou família produzia para si. Houve épocas em que esse setor era a nobreza ou alguma aristocracia, explorando trabalho servil ou escravo.
Hoje, a ilusão de igualdade se sustenta porque os donos dos meios de produção têm, supostamente, os mesmos direitos civis e políticos que aqueles obrigados a trabalhar na propriedade alheia para sobreviver. Mas tudo que essa classe trabalhadora produz é do burguês, e quem trabalha recebe salário para acessar o mínimo necessário para sua sobrevivência.
Mas, e as mulheres com isso? Ora, a maior parte das mulheres são trabalhadoras assalariadas, e sua situação de exploração é intensificada pela condição de opressão na qual vivem.
Considerar um grupo social como oprimido relaciona-se com constatar que, devido a alguma característica que o diferencie (gênero, raça, nacionalidade), ele está submetido a situações de privação de direitos sociais e políticos, além de estar submetido a exploração mais intensa de seu trabalho, muitas vezes. As políticas de apartheid são exemplos, bem como a escravização dos povos negros, a proibição de mulheres votarem em determinados contextos, o veto à livre expressão da sexualidade dos homossexuais. Em geral, essas opressões não surgem no nosso sistema econômico: têm a ver com processos históricos de diferenciação entre grupos sociais (inclusive a diferenciação social dos gêneros) e de submissão de grupos devido a essa diferenciação.
Poderíamos dizer, em abstrato, que os sistemas de opressão e exploração são completamente diferentes, de forma que o capitalismo poderia, a partir de melhorias parciais, ser um sistema econômico sem opressões. É a lógica de quem pensa que pode haver um capitalismo sem machismo ou sem racismo. Essa ideia não explica, porém, o que sustenta essas mesmas opressões, ainda presentes na nossa sociedade.
… o machismo sempre esteve ligado à superexploração do trabalho das mulheres (ou de certas mulheres), particularmente a exploração do trabalho doméstico.
O machismo, por exemplo, tem distantes origens históricas, que se ligam à própria origem da sociedade de classes. Por mais que se manifeste de várias formas, em diversas sociedades, com a privação de diversos direitos, violências de muitos tipos, o machismo sempre esteve ligado à superexploração do trabalho das mulheres (ou de certas mulheres), particularmente a exploração do trabalho doméstico.
Ainda hoje, as mulheres trabalham mais em casa que os homens, além de receberem salários menores quando trabalham fora. E quem ganha com isso? Por mais que possamos afirmar que os homens, enquanto indivíduos, se livram de parte desse trabalho, e nesse sentido são privilegiados, a verdade é que quem lucra com o trabalho alheio ganha muito mais: se as mulheres trabalham de graça em casa, o patrão (e o Estado a seu serviço) não precisa pensar em alimentar, lavar roupa e nem garantir creche para seus trabalhadores; além disso, os salários mais baixos das mulheres não só as tornam mais exploradas, garantindo mais lucro ao patrão, mas também rebaixam os salários de toda classe.
Para garantir o lucro da burguesia e o funcionamento do sistema capitalista, ideologias que inferiorizam determinados grupos sociais são importantes porque mascaram e naturalizam a exploração. As discussões sobre gênero, papéis sociais, machismo etc. vão desvelando como as opressões se relacionam com a exploração dentro do sistema capitalista. A força com que os setores reacionários da sociedade combatem essas discussões e a forma como disseminam mentiras e criam pânico na parcela da população que desconhece o que significam esses debates é a medida do potencial revolucionário e transformador contido nessas discussões. Falar de gênero é falar de revolução.
* Mariana Luppi, comunista desde os 14 anos, atualmente militante feminista e ecossocialista, formou-se em filosofia e hoje escreve, estuda e milita nos intervalos do seu trabalho burocrático kafkiano.
** Ana Paula Girardi é graduada em Letras pela Universidade de São Paulo e editora de material didático. E-mail: anapaulacgirardi@gmail.com