Novos descaminhos para a educação

Foto de uma criança pequena, de costas, andando por um caminho cercado por arbustos, tomando o rumo da esquerda num momento de bifurcação.


por Vanessa Stollar*


Extinção. Todos os lugares, concepções, ações, formações que não atendam ao produtivismo neoliberal, a ordem e ao progresso devem ser extintos. Para o bem dessa ordem, devemos extinguir as diferenças, as divergências, as identidades (e algumas pessoas também). Na nossa linha de produção (que está em pleno vapor) estará rodando o conhecimento, a cultura, a arte e a ética. Com todos os seus parafusos bem apertados, para que certos pensamentos e ideias improdutivas não vazem pelas engrenagens aceleradas do sistema, e contaminem a nossa produtividade. A educação será o motor da nossa máquina. O fluxo da montagem pedagógica criará peças padronizadas, perfeitamente adequadas a inoperância e a incompetência, qualidades as quais tanto prezamos. A violência será nossa ordem, a ignorância o nosso progresso. 

Este poderia ser, se fosse declarado, o manifesto futurista do retrocesso da educação atual. E qualquer semelhança com alguma realidade não é mera coincidência.

Segundo Duarte Junior (2003), o aprendizado humano não está vinculado somente ao uso das suas necessidades físicas ou de sobrevivência como nos experimentos com ratos, pois, dotamos de algo que nos diferencia do resto dos animais que segue seu extinto para sobreviver.

Nos últimos dois anos, uma série de[s]medidas foram tomadas de maneiras impositivas e controversas. No dia 23 de setembro de 2016, o governo federal divulgou seu plano para a reforma nacional do ensino médio, publicado por medida provisória, sem diálogo com a sociedade, e sem levar em consideração a realidade do sistema de ensino brasileiro. Além disso, o documento atual altera consideravelmente aquele que estava sendo construído anteriormente. Na primeira versão deste documento, a MP 746 de 2016 retirou a Arte do Ensino Médio, quando deu ao parágrafo 2º do artigo 26 da LDB 9694/96 a seguinte redação: “§2º O ensino da arte, especialmente em suas expressões regionais, constituirá componente curricular obrigatório da educação infantil e do ensino fundamental, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos”. A promulgação da Lei 13.415 de 2017 recolocou a Arte como componente curricular obrigatório, devido a protestos e manifestações de arte educadores e da população. A proposta prevê que serão obrigatórios os estudos e práticas de filosofia, sociologia, educação física e arte no ensino médio. Essas imposições se configuram como um enorme descaminho no rumo de uma série de conquistas que haviam sido consolidadas, após décadas de lutas. Professores de arte e pesquisadores haviam conseguido ancorar o espaço da arte como disciplina obrigatória e fundamental na formação do estudante. No documento atual, a arte aparece como obrigatória, porém está condicionada a Base Nacional Comum Curricular atrelando-a a “estudos e práticas de Artes”, perdendo assim, seu status de disciplina, e tudo que esse “nome” acarreta.

A Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio é referência nacional para a formulação dos currículos dos sistemas e das redes escolares”, válido para orientar propostas pedagógicas, e era a peça que faltava para a conclusão da reforma do ensino médio.

O currículo obrigatório da base deverá ocupar 1.800 horas do total de 3.000 horas de todo o ensino médio. O tempo restante, de 1.200 horas, serão dedicados ao ensino dos chamados “itinerários formativos”, os quais são “arranjos curriculares” propostos pelas escolas e professores ao aluno de acordo com as áreas de conhecimento.

Segundo a Federação de Arte Educadores do Brasil (FAEB), em carta aberta, publicada em novembro de 2017[1], a BNCC de Arte, contribui fortemente para a institucionalização da polivalência no ensino da Arte que obriga os professores de Arte ministrarem suas aulas com os conhecimentos e processos que extrapolam sua área de formação e atuação. Para efeito de comparação, seria o mesmo que defender que o professor de português desenvolva em suas duas aulas semanais todos os objetivos da língua inglesa, da língua espanhola e da língua francesa, por exemplo, sem que possua licenciatura em cada uma.

Mas por que a arte, a filosofia e a sociologia foram, inicialmente, retiradas do ensino médio, e alvo de mudanças nas suas concepções como disciplinas? Por que será que elas “atrapalham” o aprendizado das disciplinas “mais importantes”? Como foi publicado em artigo do jornal Folha de São Paulo, com o título Filosofia e sociologia obrigatórias derrubam notas em matemática[2].

Como professora de arte, escreverei nesse artigo, especificamente sobre o ensino da arte. A consolidação da arte na educação vem de um longo histórico de lutas, as práticas educativas em arte, assim como em outras áreas do conhecimento, surgem de mobilizações políticas, sociais, pedagógicas, filosóficas, e, no caso de arte, também de teorias e proposições artísticas e estéticas. O ensino de Arte só foi incluído no currículo escolar pela LDB de 1971, e ainda como “atividade educativa” e não como disciplina. Em 1996, “Artes” e não mais “Educação Artística” foi reconhecida como disciplina, tendo seu ensino se tornado obrigatório na educação básica.

Mas a arte não deve estar implantada na escola como uma coluna decorativa, como uma forma de “adestramento artístico”, desenvolvimento de habilidades produtivas, ou até mesmo uma maneira de contrabalancear a racionalidade.

A criação de bases curriculares ou reformulações do ensino seriam uma ótima oportunidade para repensar o papel da educação na contemporaneidade, o papel da formação, das disciplinas, e da arte na escola.

Segundo Celso Favareto (2010), as artes da modernidade, nos limites da experimentação, provocaram a mutação do conceito, das formas, dos modos e das maneiras de evidenciação da arte, situando-se muito mais no horizonte do que não pode ser dito do que do dizer, afirmando que a arte não tem nada que ver com a comunicação. A arte não é um instrumento de comunicação e nisto está a sua resistência.[3]Sendo a arte instrumento de resistência ela, ela é ameaçadora para aqueles que não admitem questionamentos ou autonomia de pensamentos.

Para Deleuze (1992)[4], esta resistência da criação deve-se ao fato de que ela é sempre estranha, pois não existe obra de arte que não faça apelo a um povo que ainda não existe, que não faz em função de um povo por vir e que ainda não tem linguagem. Eis aí o valor disruptivo da arte na educação, em que o aprendizado surge pelo espírito de investigação, pela interpretação dos signos da experiência.

O aprendizado através da arte surge através do espírito de investigação. Investigação sobre o próprio sentido da arte e da experiência que ela proporciona. E por isso, o papel da arte na escola deveria ser o de emancipação, de formar-se além de si.

A atual Base Nacional Comum curricular pode consolidar uma visão caudatária da arte, voltando décadas na educação e atrelando o ensino da arte a um instrumento de condicionamento de habilidades desconexas e alienantes e provocando um esvaziamento do conhecimento estético consistente.

A Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (ANFOBE) ­ ao participar da Terceira Audiência Pública da BNCC realizada em Florianópolis, no dia 11 de agosto de 2017, manifestou  sua preocupação com o processo de elaboração, discussão e aprovação da BNCC. Em carta aberta, a ANFOBE afirma que a base nacional comum curricular possuí diversos equívocos de formulação que impõem uma centralização curricular incapaz de considerar toda a diversidade e realidade das escolas brasileiras, quanto pela forma de condução desse processo.

Na sociedade contemporânea, várias forças agem no sentido de criar um abismo entre experiência comum e experiência estética. John Dewey (2010) afirma que se há alguma justificativa para propor mais uma filosofia do estético, ela tem de ser encontrada em uma nova abordagem. Ele ainda afirma que o problema das teorias existentes é que elas partem de uma compartimentalização pronta ou de uma concepção da arte que a “espiritualiza”, retirando-a da ligação com os objetos da experiência concreta. A experiência para Dewey é a interação da criatura viva com as condições que a rodeiam. E esse é o verdadeiro significado da arte educação.

*Vanessa Stollar é mestra em Artes e graduada em Educação Artística pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), e professora de Artes no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP).

[1] GUIMARÃES , Leda. Análise do componente ARTE da Base Nacional Comum Curricular . 2017. Disponível em: <https://www.faeb.com.br/site/wp-content/uploads/2018/03/CARTA-BNCC-novembro-de-2017.pdf>. Acesso em: 09 maio 2018.

[2] FRAGA, Érica . Filosofia e sociologia obrigatórias derrubam notas em matemática . 2018. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2018/04/filosofia-e-sociologia-obrigatorias-derrubam-notas-em-matematica.shtml>. Acesso em: 31 maio 2018.

[3] FAVARETTO, Celso F. Arte contemporânea e educação. 2010. Disponível em: <https://rieoei.org/historico/documentos/rie53a10.htm>. Acesso em: 10 maio 2018.

[4] DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. bras. Peter Paul Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1992, p. 182.

Referências

BARBOSA, A. M. Tópicos utópicos. Belo Horizonte: c/Arte, 1998. 200 p.

DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. bras. Peter Paul Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1992, p. 182.

DEWEY, John. Últimos Escritos, 1925-1953. In: BOYDSTON, Jo Ann (org.). Arte como Experiência. (Trad.) Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2010. (Coleção Todas as Artes).

DUARTE JUNIOR, João Francisco. O sentido dos sentidos: a educação do sensível. Curitiba: Criar Edições, 2003. 304 p.

FAVARETTO, Celso F. Arte contemporânea e educação. 2010. Disponível em: <https://rieoei.org/historico/documentos/rie53a10.htm>. Acesso em: 10 maio 2018.

FRAGA, Érica . Filosofia e sociologia obrigatórias derrubam notas em matemática. 2018. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2018/04/filosofia-e-sociologia-obrigatorias-derrubam-notas-em-matematica.shtml>. Acesso em: 31 maio 2018.

GUIMARÃES , Leda. Análise do componente ARTE da Base Nacional Comum Curricular. 2017. Disponível em: <https://www.faeb.com.br/site/wp-content/uploads/2018/03/CARTA-BNCC-novembro-de-2017.pdf>. Acesso em: 9 maio 2018.

READ, H. A educação pela arte. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 456 p.

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