por Ana Paula Girardi*
A história da arte é povoada por imagens da sexualidade e do erotismo representantes do imaginário coletivo de cada época. O fascínio pelo corpo humano, nus femininos e masculinos e cenas erotizadas aparecem na produção artística de cada período em um diálogo constante entre a moral vigente, as formas e as técnicas de representação na arte e a ideologia da classe dominante de cada período. A consciência de que a arte não está dissociada das questões políticas e das ideologias é fundamental para compreendermos não só a produção artística, mas também a predileção por determinados temas e formas de representação.
Em tempos nos quais exposições e performances são censuradas e atacadas por discursos conservadores e moralistas, é preciso estar atento para perceber o que, de fato, é o alvo por trás da cortina de fumaça de falsas polêmicas. E não há melhores lições do que as que a história nos dá. Como já disse Marx, a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa.
Nesta perspectiva, antes de pensarmos sobre arte contemporânea e o que foi censurado nas exposições, é importante retomarmos o nu e a sexualidade na história da arte ocidental. Para isso, é necessário nos atentarmos a dois aspectos principais: os temas em que o nu aparece nas pinturas e suas regras de representação. Com base nesses dois aspectos, devemos nos questionar sobre o conteúdo e os valores transmitidos nas obras.
Antes do século XVI, a formação do artista se dava, de modo geral, nas associações informais e nos círculos artísticos. O surgimento das academias de arte, instituições voltadas para a sistematização do ensino de arte, ocorreu com a mudança na perspectiva de quem é o artista, que passou a ser visto como indivíduo dotado de capacidades intelectuais e estilo próprio; diferentemente do artista da Idade Média, figura associada ao artesão, considerado mero executor de obras. Essa mudança é importante porque, além da formação do artista, a academia, enquanto instituição, passou a ditar e reconhecer o que é belo, correto e com prestígio na arte.
O desenvolvimento da técnica do desenho foi um ponto crucial na formação dos artistas nas academias, pois se tornou a espinha dorsal da pintura, da escultura e da arquitetura. E, na pintura, o estudo exaustivo da anatomia foi fundamental para o desenvolvimento da representação da figura humana. Se em um primeiro momento o tema do desenho e da representação pode parecer uma mera questão técnica, um olhar mais crítico nos permitirá observar os valores e os ideais propagados por meio da forma com a qual a figura humana é representada.
Voltando nosso olhar para as pinturas carregadas de erotismo e sensualidade, a arte produzida durante o Antigo Regime (séculos XVI a XVIII, na Europa) foi um momento de maior intensidade desse tipo de produção. Centrada na exposição do corpo feminino, na sensualidade das formas, a arte desse período apresentava mulheres nuas em cenas eróticas sob o véu da mitologia. Uma profusão de Vênus e outras deusas sedutoras evidenciava o papel da mulher como objeto erótico, corpos frágeis à disposição do olhar e deleite do homem – sujeito oculto nessas pinturas, voyeur do inacessível.
A arte do século XVIII passou a demonstrar, em tons pedagógicos, a virtude recompensada e o vício punido, a família exaltada e os maus filhos estigmatizados. Com essa mudança de perspectiva, a mulher não deixou de ser objetificada, mas o erótico se apresentava sob pretexto ambíguo, em cenas íntimas, em que a sensualidade estava, por exemplo, em retratar uma adolescente acordando em seu quarto. A mulher continuava a ser representada como frágil e sexualmente disponível, mas de forma recatada e em ambientes domésticos, – o lugar, afinal, da mulher burguesa.
Se houve uma inversão na forma como a mulher era apresentada nas pinturas do Antigo Regime e no século XVIII, o mesmo ocorreu com a figura masculina. Enquanto nas pinturas do Antigo Regime o homem raramente aparecia, ou quando apareceria era de modo a exaltar a presença sexual das mulheres; na pintura do século XVIII, o corpo nu masculino será exaustivamente evidenciado. Isso porque, num contexto revolucionário, havia a necessidade de exaltar a virtude cívica na figura do herói.
O século XVIII foi o momento em que as academias de arte se difundiram por toda a Europa e o ensino acadêmico, ao se voltar para o desenho da figura humana, recorreu ao modelo clássico greco-romano como padrão de beleza e ideal de homem. Nesse ponto, é importante lembrarmos que o homem vitruviano é um homem. A beleza e a perfeição das proporções eram reconhecidas no corpo masculino, considerado perfeito.
Na obsessão de desenhar o corpo do herói, as pinturas do século XVIII traziam uma efusão do homoerotismo. Corpos masculinos nus e belos eram exaustivamente retratados, mas aqui devemos ressaltar que, se as cenas eróticas e o nu feminino apareciam na arte do Antigo Regime sob o véu da mitologia, isso também ocorria com o homoerotismo do nu masculino no século XVIII. A mitologia era o lugar da homossexualidade possível.
A reflexão sobre a maneira como os corpos masculinos e femininos, assim como as cenas eróticas, foram apresentadas do Renascimento ao século XVIII nos mostra como a técnica e as regras de representação servem como meio de propagar papéis sociais e virtudes ao longo de cada período. Os temas podem ter mudado, a classe dominante e, portanto, o interesse social e econômico pode ter se alterado, mas as formas de representação e o uso da iconografia como meio de difusão de ideais permaneceram inalterados ao longo desses séculos. O ponto de ruptura foi a Arte Moderna.
Os artistas das chamadas vanguardas históricas e da Arte Moderna, em suas experimentações técnicas e formais, romperam, sobretudo, com o academicismo. As regras de composição, perspectiva, anatomia, cores e de como criar volumes foram desconstruídas pelos artistas modernos dando lugar a uma série de experimentações e inovações. Além da técnica, esses artistas romperam com a forma de apresentar os temas sociais. As mulheres nuas não mais seriam as Vênus em cenas mitológicas; mulheres comuns e prostitutas eram retratadas nuas em cenas banais. A pintura histórica perdeu lugar para cenas do cotidiano, para elaborações artísticas de questões sociais, como a miséria, o impacto da Revolução Industrial, o surgimento das cidades, a vida moderna, os horrores da guerra etc. A arte passou a elaborar e criticar a sociedade – um ataque ao modo de vida da classe dominante e às formas acadêmicas de representação.
O artista moderno propunha o pensamento livre de regras e convenções e a possibilidade de rompimento com o passado e com as formas de representação, criando uma nova arte para um mundo novo. Essa liberdade não passou incólume aos regimes totalitários que assolaram a Europa no século XX.
Em um contexto de crise do capitalismo, em uma Europa em que a busca por identidades nacionais e afirmações raciais propagou ideologias eugenistas –, a defesa do modo de vida burguês, a ascensão de regimes totalitários e a eclosão da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) levaram a um ataque à Arte Moderna.
Hitler e o partido nazista compreenderam a força das imagens e a forma como a arte poderia organizar e difundir sua ideologia. Em 1937, a Alemanha nazista organizou uma exposição com cerca de 650 obras de Arte Moderna entre pinturas, esculturas e gravuras feitas por mais de uma centena de artistas. A exposição “Arte” Degenerada, Entartete “Kunst”, tinha como objetivo mostrar ao público que a produção daquele tempo era uma degeneração cultural que levaria a sociedade ao colapso. Em contrapartida, a arte oficial do regime nazista se voltava para os modos acadêmicos de representação do homem e do belo, recorrendo aos modelos greco-romanos. Se a Arte Moderna representava de modo livre o corpo humano, a arte oficial do regime nazista pregava um ideal de beleza e de comportamento para o homem e para a mulher. Homens fortes e viris e mulheres altivas e saudáveis, aptos para gerar o novo homem alemão, em oposição aos corpos nus da Arte Moderna, associados, no discurso nazista, a doenças físicas e mentais.
Esse ataque à Arte Moderna foi um ataque à liberdade de pensamento e expressão. O artista não poderia criar novas formas de representação, pois a arte deveria servir à propagação da ideologia da classe dominante, presa aos já consagrados modos de representação e técnica. O belo, o correto, o moralmente aceito é o modo de vida burguês e a liberdade artística representava uma abertura de contestação.
As discussões de experimentações técnicas e temáticas dos artistas das vanguardas históricas e da Arte Moderna deram origem a uma série de outras possibilidades e rompimentos na história da arte. Do figurativismo ao abstracionismo, os artistas puderam experimentar rompimentos formais, novos materiais, aprofundamentos da relação entre arte e indústria, arte e tecnologia etc. Dentre os temas, os artistas seguiram elaborando e refletindo as mazelas de sua época, agora sob o jugo de mais anos de opressão e agravamento das contradições do sistema capitalista.
Passados 80 anos da exposição “Arte” Degenerada, as questões de representação étnico-raciais, sociais, ambientais, gênero e sexualidade ganharam cada vez mais espaço e são temas na discussão artística. Em um contexto de crise econômica e social, nos deparamos, mais uma vez, com a propagação de discursos conservadores e reacionários que reafirmam o modo de vida burguês, numa clara defesa de interesse e ideologia de classe. Como farsa, vemos performances e exposições que discutem gênero e sexualidade serem censuradas e fechadas, sob argumentos que contestam o valor artístico e técnico das obras, assim como apontam uma pretensa degeneração e ataque à família, à moral e aos bons costumes. Cabe a nós sabermos compreender o que isso significa e darmos uma resposta à altura da necessidade que nosso período histórico nos impõe.
Bibliografia
ARQUITETURA da Destruição (Architektur des Untergangs). Direção de Peter Cohen. Produção de Poj Filmproduktion AB/SVT Drama/Sandrews/Svenska Filminstitutet (SFI). Suécia, 1992.
BORTULUCCE, Vanessa Beatriz. A arte dos regimes totalitários do século XX – Rússia e Alemanha. São Paulo: Annablume, 2008.
COLI, Jorge. O corpo da liberdade: reflexões sobre a pintura do século XIX. São Paulo: Cosac & Naify, 2010
*Ana Paula Girardi é graduada em Letras pela Universidade de São Paulo e editora de material didático. E-mail: anapaulacgirardi@gmail.com
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