O corpo e a escrita: a literatura brasileira produzida por mulheres

Busto de Maria Firmina dos Reis, 1ª romancista do Brasil, localizado na Praça do Pantheon, em São Luís (MA)
Imagem: Busto de Maria Firmina dos Reis, 1ª romancista do Brasil, localizado na Praça do Pantheon, em São Luís (MA).
Crédito: Ramsessantos, CC BY-SA 4.0 <https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0>, via Wikimedia Commons

 

por Yasmin Malaquias*

Ao longo da história, as mulheres tiveram suas vivências restringidas pelas normas patriarcais que ainda hoje determinam o que lhes é permitido. Assim, a produção intelectual – seja artística ou científica – ainda hoje enfrenta diversos obstáculos de propagação, especialmente se comparada àquelas que os homens produzem. Tal situação é resultado de processos históricos fundamentais ao funcionamento do sistema econômico vigente e à dinâmica social e laboral que surge a partir do século XVI, como expõe Silvia Federici (2017). 

A pensadora feminista, que marcou presença na Festa Literária de Paraty – Flip – em 2023, disse em entrevista à “Opera Mundi” que: “O corpo da mulher é a última fronteira de conquista do capital.”, ou seja, nas dinâmicas do capitalismo, a desvalorização e a desapropriação do corpo feminino foram necessárias para que o próprio sistema pudesse funcionar do modo como funciona, relegando a “tarefa doméstica” – maneira pela qual o trabalho doméstico foi chamado na lógica patriarcal –  à invisibilidade. Nesse sentido,  a autora diz:

As mulheres não poderiam ter sido totalmente desvalorizadas enquanto trabalhadoras e privadas de toda sua autonomia com relação aos homens se não tivessem sido submetidas a um intenso processo de degradação social; e, de fato, ao longo dos séculos XVI e XVII, as mulheres perderam terreno em todas as áreas da vida social. (Federici, 2017, p. 199)

Uma dessas áreas é, sem dúvida, o acesso à educação, reivindicação que se torna central nos primeiros movimentos feministas. É ele, por exemplo, que abrirá portas à literatura, manifestação artística que foi permeada, assim como tantas outras, por privilégios de classe, raça e gênero. Afinal, quem tinha – e ainda tem – tempo hábil para se dedicar inteiramente à produção literária? Eram os proletários no período da Revolução Industrial? As pessoas negras que foram – e são – submetidas a condições subumanas? Ou as mulheres que enfrentam em suas casas um trabalho ininterrupto e não-remunerado? 

O caráter libertador da educação aparece de maneira explícita para todos grupos acima listados. O feminino, principalmente, apresentou desde o século XIX um apoderamento da leitura, segundo Constância Lima Duarte (2016). Para a pesquisadora, o acesso ao estudo foi fundamental para o entendimento da condição submissa na qual as mulheres se encontravam, caracterizando uma escrita tece críticas à sociedade: 

E independente de serem poetisas, ficcionistas, jornalistas ou professoras, a leitura lhes deu consciência do estatuto de exceção que ocupavam no universo de mulheres analfabetas, da condição subalterna a que o sexo estava submetido, e propiciou o surgimento de escritos reflexivos e engajados, tal a denúncia e o tom reivindicatório que muitos deles ainda hoje contêm. (Duarte, 2016, p. 14)

Infere-se, portanto, que as escritas que emergem dos grupos minorizados da sociedade são de natureza intrinsecamente política, pois alteram uma lógica fundamental de como a literatura e o cânone estão organizados e, não só isso, demandam direitos que deveriam ser comuns a todos e todas. A literatura de mulheres, de maneira geral, exigirá o direito ao corpo; seja em relação à sua liberdade, à sua sexualidade e aos limites que lhe são impostos. Na literatura brasileira, especialmente, os exemplos são numerosos e diversos, em diferentes movimentos literários. 

Durante o Romantismo brasileiro, a escritora Maria Firmina dos Reis (1822-1917)  publicou “Úrsula” e ficou marcada como a primeira mulher a publicar um romance no Brasil. A história da maranhense tem sido cada vez mais difundida nos espaços educacionais ,  e possui um cunho abolicionista evidente: a construção das identidades feminina e negra escravizada aparecem constantemente na narrativa e, a todo momento, o corpo desses dois grupos são postos como centrais. Uma personagem que cabe destacar é a preta Susana, uma mulher escravizada que é, diferentemente do retratado até então, enunciadora de seu discurso. Por meio de Susana, a narrativa mostra que os corpos escravizados eram mais que mercadoria humana, que tinham famílias, afetos, histórias e que tudo isso foi saqueado. A liberdade, nesse sentido, é o fio condutor da narrativa, tanto a da personagem principal Úrsula, dentro dos limites históricos e ficcionais ali estabelecidos, como a liberdade dos personagens negros; perspectiva que somente uma autora negra poderia trazer com tanta propriedade. 

Apesar do pioneirismo de Maria Firmina dos Reis, outras mulheres também foram muito importantes para se pensar como a literatura estava sendo produzida nos movimentos literários do século XIX. No Realismo e no Naturalismo, Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) se destacou com “A falência”, bem como Francisca Júlia (1871-1920) no Parnasianismo e no Simbolismo com suas poesias marmóreas. Ambas retrataram o corpo e reivindicaram as questões do feminino, no entanto, é fundamental considerar que se tratava de mulheres brancas e de condição social privilegiada, diferentemente de Maria Firmina dos Reis, que ficou esquecida pela historiografia literária por muito tempo. 

Comparando essas produções, uma questão que aparece e fica muito clara é a seguinte:  as questões de raça e classe ficam evidentes e o direito à arte fica, mais uma vez, restrito. Se, segundo Virginia Woolf (2014, p. 12), “[…] uma mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu, um espaço próprio, se quiser escrever ficção […].”, quem eram as mulheres que, mais uma vez, podiam produzir? A interseccionalidade é o melhor caminho para enxergar os diferentes alcances dos escritos dessas mulheres que foram importantíssimas para a literatura, porque, mesmo sendo mulheres, suas vivências foram permeadas por diferentes graus de opressão. 

Um desses graus, por exemplo, é o da opressão política, que pode ser vista na literatura produzida por Patrícia Galvão (1910-1962), popularmente conhecida como Pagu, autora homenageada pela Flip em 2023. A poeta, que apresenta características modernistas, foi perseguida pelo governo Vargas por ser uma ativista comunista e foi presa 23 vezes, o que refletiu na sua produção literária, como nos mostra sua fortuna crítica.  Em seu poema “Natureza Morta”, a voz lírica revela nos últimos versos: “Estou com tanto frio, e não tenho ninguém…/ Nem a presença dos corvos.”, o que nos leva a refletir sobre as tentativas de silenciamento que a autora sofreu ao longo de sua vida. Ela reivindicou, em seus versos e romances, um corpo feminino proletário que atua politicamente e é livre para a luta e militância.

Outra mulher, na 3a fase do Modernismo, se destacou e tornou-se fundamental no cânone literário: Clarice Lispector (1920-1977), que era, assim como as Júlias, uma autora de classe alta que teve condições materiais para sua produção. Sua obra ficou marcada pela subjetividade e pelo fluxo de consciência de personagens mulheres protagonistas de suas próprias histórias. Em “A hora da estrela”, seu romance mais famoso, a melancolia aparece fortemente e constrói a narrativa. Ela propôs em sua obra  retrato de um corpo que não se limita ao concreto e transcende esse plano, dando ao íntimo do feminino um retrato  completamente diferente do que era visto até então, porque o lugar social feminino, proporcionou um retrato fidedigno. 

Porém, na mesma época em que Lispector escrevia, Carolina Maria de Jesus (1914-1977) publicava seus diários, que denunciavam a necessidade comida, educação e oportunidade que, como ela mostra, foram-lhe negados durante toda a sua vivência. A escritora periférica contrariou a expectativa do ócio para produção, sendo então uma autora que, além de mulher negra, foi também contra-hegemônica, ou seja,  sua literatura é de denúncia e de fome. Sua escrita alinha-se com pensamento decolonial da crítica literária de Gloria Anzaldúa (2000, p. 233, grifos nossos): 

Esqueça o quarto só para si escreva na cozinha, tranque-se no banheiro. Escreva no ônibus ou na fila da previdência social, no trabalho ou durante as refeições, entre o dormir e o acordar. […] Enquanto lava o chão, ou as roupas, escute as palavras ecoando em seu corpo.

Como Anzaldúa poeticamente propôs, a produção de mulheres periféricas é algo que ecoa do corpo; é uma necessidade. 

Outra grande voz que põe o corpo no centro de suas narrativas e necessidades é Aline Bei (1987-), especialmente em seu livro de estreia “O peso do pássaro morto”. Nele, a personagem sofre um estupro de um ex-namorado e dessa violência nasce seu filho, com quem tem uma relação conturbada. O livro é um manifesto pelo direito do próprio corpo, para que as mulheres não sejam mais violentadas em suas mais diferentes formas e possam ter o direito de escolher o que ocorre nele. Essa temática, principalmente na literatura brasileira, é muito recente e tem ganhado cada vez mais espaço e propagação por meio do discurso feminino. 

A autora, inclusive, relatou no Instagram, no dia 18 de julho, que ao ler o clássico ensaio “Por que escrevo” de George Orwell, sentiu falta de uma razão da escrita: o Corpo – grafado com letra maiúscula, cabe ressaltar. A escritora relata que sempre, em ensaios sobre escrita, sente falta dessa palavra. Assim, pensando que grande parte das reflexões sobre literatura foi por muito tempo controlada e protagonizada  por homens, que historicamente detêm domínio sobre o corpo, as relações entre escrita e corpo aparecem com mais força na literatura de autoria feminina. O corpo é peça central nos versos e nas narrativas, porque também é peça central na existência dessas transgressoras mulheres. 

Diante desses breves exemplos, pois o mulherio da literatura brasileira é composto por diversos nomes que poderíamos citar, conclui-se que a escrita de mulheres sempre tematiza o corpo, porque ele sempre foi negado na dinâmica patriarcal e capitalista; o corpo no qual se habita, para as mulheres, nunca as pertenceu. O que muda com a possibilidade da escrita. A literatura de autoria feminina é um manifesto pela existência do corpo feminino, em sua totalidade e pluralidade, visto que elas foram invisibilizadas na vida social, nos espaços de poder e no cânone literário. Assim como a liberdade, a busca de mulheres pelo reconhecimento na literatura é uma luta-resistência constante. 

Referências 

ANZALDÚA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Revista Estudos Feministas, v. 8, n. 01, p. 229-236, 2000.

DUARTE, Constância Lima. Imprensa feminina e feminista no Brasil: Século XIX: dicionário ilustrado. 1 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016. 

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução do Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 20 17. 

WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. 1. ed. Trad. Bia Nunes de Sousa e Glauco Mattoso. São Paulo: Tordesilhas, 2014.

 

*Yasmin Malaquias é aluna do curso de Logística integrado ao Ensino Médio do IFSP – Campus Avançado Jundiaí. Também é bolsista PIBIFSP e membra do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABI-IFSP).  

 

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