Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil / CC BY (https://creativecommons.org/licenses/by/3.0)
por Paulo Reis dos Santos*
No dia 23 de setembro de 2015, o Secretário Estadual de Educação de São Paulo, Herman Jacobus Cornelis Voorwald, através de entrevista ao jornal Bom Dia São Paulo, da Rede Globo de Televisão, replicada pelos jornais Folha de São Paulo e Estado de São Paulo, anunciou o Plano de Reorganização da Rede de Ensino do Estado que iria separar a maioria das escolas em unidades de ensino fundamental 1, para crianças do 1º ao 5º ano; ensino fundamental 2, do 6º ao 9º ano e ensino médio.
Ao todo, a reorganização do ensino iria disponibilizar 1,8 % das 5.147 escolas do estado, ou seja, seriam fechadas 93 unidades escolares cujos prédios seriam ocupados por outros órgãos da Secretaria de Educação do Estado. No total, 1.464 unidades estariam envolvidas na reconfiguração, mudando o número de ciclos de ensino que seriam oferecidos e, do total de 3,8 milhões de estudantes matriculados, 311 mil alunos deveriam mudar de escola. A medida também atingiria a vida pessoal e profissional de 74 mil professores e tantos outros profissionais.
O Secretário Voorwald justificou a proposta afirmando que a rede de ensino público paulista conta com uma estrutura para atender 6 milhões de alunos, entretanto atende somente 4 milhões, havendo, portanto, 2 milhões de vagas ociosas. Ou seja, o remanejamento teria por objetivo único concentrar os alunos em determinadas unidades, para fechar escolas e aumentar a quantidade de alunos por sala. Mais de um mês depois, em 28 de outubro, o governo de São Paulo divulgou a lista das 93 escolas que seriam disponibilizadas.
Dias depois, governo, sociedade civil organizada, professores, pais, alunos, acadêmicos e imprensa em geral e toda a complexa trama de atores implicada com a educação foram tomadas de assalto com a notícia de que no dia 9 de novembro de 2015 os alunos de duas das principais escolas públicas do Estado de São Paulo, a Escola Estadual Fernão Dias Paes no Bairro de Pinheiros e a Escola Estadual Diadema, no ABC Paulista, ocuparam as instituições e as trancaram por dentro.
Apesar dos tumultos e da truculência da Polícia Militar, contra os ocupantes, em 14 de novembro, as escolas ficaram abertas para receber pais e alunos e tirar dúvidas sobre a reestruturação. O dia foi chamado de “Dia E” pela Secretaria de Estado da Educação. A pasta também criou um sistema on-line de consulta sobre a matrícula para 2016.
A partir de então, a Ouvidoria das Polícias Civil e Militar do Estado de São Paulo recebeu cerca oito denúncias de ações truculentas, supostamente cometidas pela Polícia Militar (PM), contra manifestantes, estudantes e professores durante as ocupações das escolas e bloqueios de vias em manifestações públicas.
É interessante notar que as ocupações surgiram fora do movimento estudantil tradicionalmente organizado. Elas foram fruto de movimentos descentralizados e organizados por adolescentes com idades entre 14 e 17 anos de idade. Apesar da pouca idade esses jovens falaram com desenvoltura e sabiam muito bem o que queriam ou, o que não queriam.
Em toda esta movimentação destacou-se o protagonismo feminino já que muitas das ocupações e demais manifestações contra a reforma do ensino paulista, foram organizadas por garotas, e também foram elas, em sua grande maioria, que conduziram as assembleias, organizaram as tarefas, promoveram debates sobre gênero e enfrentaram os policiais.
Neste sentido, os organizadores foram na contra mão de muitas teorias e infinitas instituições que se organizam em função dos estereótipos heteronormativos machistas, patriarcais e de gênero, que não dão conta de como a sociedade vem se transformando.
Apesar de o gênero ser estruturante da vida social, subalternizando as mulheres e o feminino, essas jovens estudantes tiveram a iniciativa de desconstruir os papéis e as funções sociais destinados historicamente a elas e, corajosamente, por meio deste protagonismo, se firmaram enquanto sujeitos de sua história.
As ocupantes das escolas, nas tarefas cotidianas de militância, problematizaram os lugares sociais destinados às mulheres e aos homens, tão estanques, marcados tanto pelo poder, machismo, misoginia e homofobia, quanto por relações hierárquicas de poder, nas quais o homem é superior e sempre esteve à frente na vida social.
Todos os envolvidos neste imbróglio em nome do Estado; o ex-Secretário Estadual de São Paulo, Herman Jacobus Cornelis Voorwald (60 anos); o Governador, Geraldo Alckmin (64 anos); o ex-Secretário da Segurança Pública, Alexandre de Moraes (48 anos, atual Ministro do Supremo Tribunal Federal); o ex-Chefe de Gabinete da Secretaria da Educação, Fernando Padula Novaes (39); o Secretário de Estado da Educação, José Renato Nalini (70 anos), são homens, brancos, de classe média alta, com nível de escolaridade superior e a maioria possui doutorado. Típicos representantes do patriarcado, do establishment, de um poder político que se exerce em detrimento do povo. Desejam e se articulam para criar corpos dóceis e mentes servis por meio do processo de escolarização. Odeiam corpos autônomos e mentes críticas, e se pretendem representantes deste mesmo povo ordeiro e servil.
Entretanto, a complexa trama de forças implicadas nas questões de educação demonstrou que as jovens estudantes paulistas possuem capacidade para inverter ou modificar essas relações de forças. No geral, as ocupações foram organizadas pelas estudantes, com apoio de professores e funcionários, sendo as escolas trancadas por dentro e se transformando em espaços democráticos de aprendizado. Todas as decisões foram tomadas em assembleias. A hierarquia e a subserviência, características do ambiente da escola formal, foram postas de lado. Tanto para a articulação da ocupação quanto para a difusão de informações, as redes sociais e os dispositivos tecnológicos foram exaustivamente utilizados.
As estudantes permaneceram nas escolas em acampamentos improvisados, cuidando de sua manutenção (serviços de limpeza, segurança, alimentação, etc.) e também de seu dia a dia, que incluiu uma rotina bastante ativa com inúmeras atividades. Além de aulas e debates, sobre temas mais vinculados ao universo da educação formal, aconteceram também aulas públicas sobre a questão de gênero e o feminismo; debates sobre formas alternativas de educação; oficinas de mídia alternativa; conversas com movimentos populares; aulas de circo, de dança, de teatro e jogos coletivos. Fora dos portões das escolas aconteceram as marchas pela cidade e o bloqueio de ruas e avenidas.
Fortemente evidenciando o protagonismo feminino tanto na organização, quanto no enfrentamento à repressão policial, a estudante Cauline, (entrevistada pela Revista Caros Amigos no 226), contou que a repressão policial não tem intimidado as secundaristas e que a tática de colocar as meninas na linha de frente da ação tem por objetivo proteger os meninos das agressões, pois é raro as meninas e mulheres serem agredidas pelas forças policiais.
Um dos atos emblemáticos das manifestações ocorreu no dia 30 de novembro de 2015 – foi a simulação de uma aula, com alunas sentadas em cadeiras, enfileiras no cruzamento das Avenidas Rebouças com a Faria Lima, na zona oeste da cidade de São Paulo. A imagem de Marcela Nogueira, a garota da reportagem do jornal “O Estado de São Paulo”, publicada em 13 dez. 2015, simulando a professora desta aula de defesa da democracia, encarando de frente a violência policial, circulou pela internet e virou símbolo desta resistência estudantil.
Por meio de ações truculentas contra estudantes jovens com idade entre 14 e 18 anos que se opuseram ao plano de reorganização do sistema de educação paulista, a Polícia Militar atingiu uma dimensão fantasmagórica do poder disciplinar, como estrutura formal de dominação política, operando pela governamentalização do Estado contra inimigos indisciplinados, com táticas e estratégias de uma guerra infindável.
Ao contrário do que se tem deliberadamente divulgado, falar em uma educação que promova a igualdade de gênero não significa anular as diferenças percebidas entre as pessoas, mas sim garantir um espaço democrático, onde tais diferenças sejam positivadas e não se desdobrem em desigualdades, hierarquias e marginalizações.
A escola deve possibilitar o desenvolvimento do pensamento crítico a partir da compreensão sobre as diferenças corporais e sexuais que culturalmente se cria na sociedade, possuindo papel fundamental na desmistificação dos estereótipos de gênero, além de ser um importante instrumento na construção de valores e atitudes, que permitam um olhar mais crítico e reflexivo sobre as identidades de gênero e sexual.
Todo este cenário de violência de gênero contra as alunas secundaristas do Estado de São Paulo aconteceu no século XXI, o que evidencia nossa dificuldade em perceber e reconhecer a equivalência das condições de equidade e isonomia entre o homem e a mulher. Temos incapacidade, ou má vontade, para admitir a fragilidade da segurança que a mulher encontra em todos os contextos sociais, sobretudo aqueles onde o Estado deveria por direito e por força da lei garantir. A cultura do machismo banaliza violências mínimas (por exemplo o “psiu” na rua), violências intermediárias (resistir ao fim do namoro) e violências máximas (estupro, sequestro, assassinato) todos os dias contra elas.
A maioria entrou nessa luta sem ter consciência do tamanho do inimigo que enfrentariam. Resistindo e sentindo na pele a opressão do sistema, se transformaram em ativistas. Lutaram por aquilo que acreditaram ser justo. Conquistaram pais, mães, intelectuais, artistas, mídia, redes sociais, o Ministério Público e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo e provocaram, pelo menos temporariamente, o recuo do governador Geraldo Alckmin.
Nos mais de 40 dias de ocupações, caminhadas e manifestações públicas, denunciaram o machismo cotidiano sofrido no ambiente escolar e escancararam a violência de gênero protagonizada pelo Estado e, assim, ensinaram à sociedade que o sexismo leva ao desperdício de talentos. As vozes dessas e desses adolescentes clamaram por participação nos processos decisórios que marcam os rumos da educação; por democracia; pelo rompimento de suas invisibilidades (construídas socialmente); por espaços e mudanças; pela educação pública, gratuita e de qualidade; e pelo reconhecimento de suas especificidades.
Para todos nós ficou uma lição: homens fascistas e machistas não suportam e não querem o empoderamento feminino, e, parodiando os estudantes de Uberlândia: tentaram enterrá-las, mas, mal sabiam que elas eram, e são, sementes.[1]
*Paulo Reis dos Santos é Mestre e Doutor em Educação pelo GEISH – Grupo de Estudo Interdisciplinar de Sexualidade Humana da Faculdade de Educação da UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas. Atualmente ministra cursos, palestras e oficinas na área de sexualidade com ênfase nos temas: processos de estigmatização; produção de violências; diversidades sexuais; educação de professores; homoparentalidade; homoafetividade; adoção; prevenção às DSTs e HIV/AIDS; Estudos de Gênero; Políticas Públicas em Direitos Humanos e na promoção de cidadania.
Referência
[1]A frase “Tentaram nos enterrar: mal sabiam que éramos sementes” foi incluída em Carta Aberta à População, contra a PEC 241, divulgada pelos estudantes das escolas ocupadas de Uberlândia-MG, em 7 de novembro de 2016.
Um texto de uma clareza e compromisso politico contra o racismo impar. Parabéns pelo texto e por desvelar a cegueira de quem não reconhece a sub-humanidade a que negros/as são cotidianamente tratados/as.
Paulo, gostei muito do seu texto.
Claro, conclusivo e sempre oportuno no tratamento de desigualdade de gênero.