O que fizemos? O que vamos fazer?

Foto de perfil, até a altura do peito, de homem branco cabisbaixo, vestindo uma blusa com capuz.


por Felipe Sanches*


Nós, homens, precisamos discutir a nossa masculinidade. E essa abordagem deve sair do âmbito particular e ser alçada à coletividade. É uma discussão urgente, já vem com muito atraso e é para o bem de todas e todos. É um absurdo que esse assunto ainda seja um tabu.

Nós, homens, certamente não somos capazes de fazer um mal desenhado rascunho do calvário cotidiano a que são submetidas as mulheres, por responsabilidade exclusiva de nós, homens – consagrada e sedimentada em leis e convenções formuladas por nós, homens, para nosso restrito interesse.

Vamos fazer um exercício.

Esta revista já discutiu, mais de uma vez, por meio de brilhantes artigos ao longo de suas edições, o direito à cidade[1], mas você, homem, já parou para pensar nesse conceito aplicado à realidade das mulheres?

Não é um exercício fácil.

Nós, homens, nem imaginamos o tamanho do privilégio que gozamos quando, ao terminar um extenuante dia de trabalho, temos como opção de lazer plausível, em qualquer dia, nos dirigir sozinhos a um bar e pedir uma cerveja gelada, a ser saboreada enquanto observamos os carros e as pessoas passando na rua, e refletimos solitariamente sobre a vida, sem sermos, de forma alguma, importunados.

Nós, homens, também não paramos para pensar que somos privilegiados desde a infância, quando podíamos, sem restrição, jogar bola na rua e soltar pipa, enquanto as meninas, na maioria das vezes, eram obrigadas a ficar brincando de boneca em casa.

Também não fazemos ideia da sensação maravilhosa que é nos sentir relativamente seguros ao caminhar sozinhos pelas ruas, a qualquer hora do dia e da noite, normalmente sem sermos assediados e raramente tendo nossos corpos e nossas vidas ameaçados[2].

E, se começarmos a elencar aqui os inúmeros privilégios que determinam esse abismo de disparidade entre homens e mulheres, em todos os âmbitos, classes sociais, contextos ideológicos e modelos de sociedade, e ainda somarmos a outros preconceitos corriqueiros, como o racismo, a gordofobia, a homofobia e derivados, contra as pessoas com deficiência e muitos outros, precisaríamos discorrer ao longo de volumes e mais volumes de uma verdadeira enciclopédia.

Você, homem, já parou para pensar que os seus principais ídolos do cinema (diretores, atores, fotógrafos etc) são, em sua maioria, homens? E que essa regra se estende para a maioria das pessoas, independentemente do sexo? O mesmo ocorre com escritores e músicos. Mesmo diverso, o mundo artístico também é homogêneo no que diz respeito ao machismo, e isso também traz consequências trágicas, como revela o recente boom de denúncias de assédio sexual em Hollywood, contra figuras da relevância de Roman Polanski, Harvey Weinstein, Quentin Tarantino e Woody Allen.

Também nas universidades, onde o conhecimento é produzido, são comuns os papos de corredor que relatam assédios de professores homens contra alunas. O machismo dos homens contaminou as entranhas de uma sociedade doente.

O fato é que nós, homens, estamos fazendo algo de muito errado para a sociedade, e isso tem a ver com os nossos mais consagrados modelos de masculinidade. A relação de dominadores e dominadas já custou o sangue de muitas mulheres, causa dor e sofrimento e produz injustiça a todo minuto. Até quando vamos nos considerar superiores e vamos nos valer da força física para alimentar essa falsa ideia? Quando vamos abandonar a cultura do estupro como principal combustível da nossa libido e vamos passar a praticar e consumir[3] modelos de relações sexuais não abusivos? Quando vamos mexer em nossos gatilhos de desejo, para que deixem de ser machistas e vetores de posturas violentas contra a mulher? E isso inclui os homens das mais variadas orientações sexuais, pois, se há elementos que unem todos os homens, estes são o machismo e misoginia.

Aos olhos de toda mulher que não nos conhece e, com certeza, a outras conhecidas, somos estupradores em potencial. E elas tem total razão de pensar dessa maneira. Numa sociedade de homens abusadores, assediadores e inseguros não há maneira de se sentirem à vontade quando sozinhas em locais públicos. Portanto, se quisermos reverter esse rótulo, há muito o que fazer.

Nós, homens, temos a obrigação de ser “o chato” na roda do bar com os amigos machistas e misóginos e repelir veementemente manifestações dessa natureza. Mais do que isso, apresentar os argumentos que invalidam esse tipo de postura. Devemos invadir os grupos de WhatsApp voltados à pornografia – que normalmente representa uma indústria de abuso à mulher, das mais variadas formas –, e escancarar o mar de dor alimentado por esse tipo de consumo.

Nós, homens, precisamos ter como meta de vida nos livrar desses sangrentos modelos de masculinidade que instituem a objetificação da mulher e condicionam a narrativa do tesão a esse nefasto dispositivo.

Os resultados dessas pequenas atitudes de nós, homens, se difundidas, tendem a ser a propagação de relações mais saudáveis entre as pessoas, a mitigação de problemas psicológicos contemporâneos, a descoberta de novas alternativas no que se refere à vida sexual, a proposição de modelos afetivos sustentáveis para as próximas gerações e, óbvia e principalmente, a preservação das vidas de muitas mulheres, de todas as idades, e um necessário, tardio e significativo empoderamento feminino, para o bem de todas e de todos.

Para um entendimento mais amplo do tema central deste Editorial, recomendamos o documentário Chega de fiu fiu[4], das diretoras Fernanda Frazão e Amanda Kamanchek.

*Felipe Sanches é graduado em Geografia pela Universidade de São Paulo, poeta, editor de livros didáticos, colaborador de publicações da Editora Gota e coidealizador da Revista Aluvião.

[1] Conceito formulado pelo filósofo e sociólogo francês marxista Henri Lefebvre (1901-1991) em sua obra Le droit à la ville (Paris: Anthropos, 1968), traduzida e publicada no Brasil sob o título de O direito à cidade, que apresenta a urgente demanda das pessoas citadinas por um “acesso renovado e transformado à vida urbana”. O conceito inicial tem sido amplamente explorado e expandido pelo geógrafo britânico marxista David Harvey (1935-), que o define como “muito mais que a liberdade individual para acessar os recursos urbanos: é o direito de mudar a si mesmos por mudar a cidade. É, sobretudo, um direito coletivo, ao invés de individual, pois esta transformação inevitavelmente depende do exercício de um poder coletivo para dar nova forma ao processo de urbanização. O direito a fazer e refazer nossas cidades e nós mesmos é, como quero argumentar, um dos mais preciosos, e ainda assim mais negligenciados, de nossos direitos humanos”. Ver mais em <https://newleftreview.org/II/53/david-harvey-the-right-to-the-city> (em inglês) e em <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-direito-a-cidade/>. Acessos em: 18 jul. 2018.

[2] Se você for homem branco, heterossexual e de classe média, a chance é muito próxima de zero. Caso não for, suas chances podem aumentar, mas jamais serão equivalentes às das mulheres, em que pesem as variáveis poder aquisitivo, características étnico-raciais (segundo o IBGE) e local onde vive.

[3] Como modelo de pornografia que respeita as mulheres e desenvolve uma produção sustentável, este Editorial recomenda a obra da diretora sueca, radicada em Barcelona, Erika Lust (1977-), cujos filmes estão à venda para download em: <https://store.erikalust.com>. Acesso em: 19 jul. 2018.

[4] CHEGA de fiu fiu. Direção: Fernanda Frazão, Amanda Kamanchek. São Paulo (BR): Brodagem FIlmes, 2018. (73 min.).

 

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