Rubem Fonseca (1925-2020) – Amálgama

Pintura em tom pastel de vários livros em uma prateleira.
Foto: by pedrosimoes7 on VisualHunt.com /  CC BY

por Antonio Carlos Oliveira Jr.*

As pessoas andam pela cidade e nada veem. Veem os mendigos? Não. Veem os buracos nas calçadas? Não. As pessoas leem livros? Não, veem novelas de televisão. Resumindo: as pessoas são todas umas cretinas.

Sou do tempo em que as pessoas gostavam de ópera, foder e sanduíche de mortadela. Ópera? Acho que não tem mesmo nem no Scala de Milão.

Sanduíche de mortadela? Você entra em qualquer botequim, botequim não, botequim também acabou, tem esses bares, na maioria você é atendido no balcão e eles só vendem hambúrgueres, cheeseburguers e outras merdas desse tipo. 

Foder? As pessoas não fodem mais. No século XXI com os graves problemas de comunicação provocados pela televisão e agravados pela internet, com os sofrimentos causados pelos nossos inevitáveis surtos de egocentrismo e narcisismo, a masturbação é o mais puro prazer que nos resta.

As duas coisas que mais odeio são Natal e Ano-novo, essas celebrações idiotas. O dia 31 de dezembro, essa merda conhecida como Réveillon, é quando os filhos da puta grã-finos, os drogados, os mendigos, os macumbeiros dão gritos saudando o Ano-novo. Odeio feriado, em feriado eu quero trabalhar, não vou porque não tenho emprego. Mas já trabalhei…Não sei se conto…Vou contar: trabalhei matando gente, eu era assassino profissional. Nessa época do ano matei um Papai Noel, e matar aquele Papai Noel deu-me grande felicidade. Comprei um monte de brinquedos e dei para as crianças do morro, com um cartão em que escrevi Feliz Natal.

Estou sendo discrepante ao dizer que escrevi Feliz Natal no Cartão que dei aos fodidos? Você acha? Então você que se foda. Puta merda, nem falei de Réveillon e já estão me sacaneando?

Voltando ao Natal, tem sempre um anão se metendo na minha vida. Até já matei um e coloquei dentro de uma mala. Fiquei um dia e uma noite sem saber o que fazer com aquela bagagem. Fiquei horas com a mala, às vezes eu a pegava e andava pela sala, carregando-a de um lado para o outro. Jogo no lixo? Eu não tinha carro, sempre achei que carro de nada serve, mas para quem tem um anão morto dentro de uma mala até que um carro tem alguma utilidade. Matar uma pessoa é fácil, difícil é livrar-se do corpo.

Cuidado com essas histórias de anões. Me contaram que havia um lugar onde anualmente ocorria um concurso chamado arremesso de anão, quem arremessasse o anão mais longe ganhava um prêmio. Isso é mentira. Tudo que as pessoas dizem, ou quase tudo, é mentira. É mentira também o que você ouve no rádio, na televisão, lê no jornal, na revista, no zapzap, é tudo mentira. Sei que tem gente que não vai acreditar nessa história que estou contando. 

Foda-se.

O que os outros pensam da gente não interessa, só interessa o que a gente pensa da gente; por exemplo, se eu pensar que eu sou um merda, eu sou mesmo, mas se alguém pensar isso de mim o que que tem?

Passamos a vida fazendo definições, definimos todas as coisas; definimos o bem e o mal, o falso e o verdadeiro e achamos que somos livres porque podemos definir. Mas ocorre que somos obrigados a definir e porque somos obrigados a definir não somos livres.

Jesus, segundo são Marcos, disse “amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Eu não acredito nem em Jesus, muito menos em são Marcos. Um filósofo inglês, Edmund Burke, afirmou “ama a humanidade, detesta teu semelhante”. Eu não amo a humanidade, e detesto meu semelhante. Sei que não sou o único misantropo do mundo. Existem muitos, mas muitos mesmo. Quando ando pelas ruas identifico inúmeros, pela maneira de olharem os circunstantes.

Hoje somos mais de 5 bilhões. O homem prevaleceu, triunfou, ele se tornou o verdadeiro rei dos animais, de todos os animais, e faz parte de sua essência maléfica crescer como um câncer, inventar novas maneiras de destruir. O problema é que esse animal, para continuar mandando no mundo dessa maneira esbulhatória, precisa constantemente de mais ar, mais água, mais espaço, mais riqueza e prazeres que a natureza, a sua inimiga, já não tem para lhe entregar ao ser estuprada.

Este país vai mal, aliás, o mundo vai mal, está tudo uma merda. À vezes penso que minha única saída é o suicídio. Fogo às vestes? Barbitúricos? Pulo da janela? Hoje à noite vou à boate, cansei de matar Papai Noel.

*Antonio Carlos Oliveira Jr. é skatista, guitarrista e amante dos bons livros.

Referências

1 – FONSECA, Rubem. O matador de corretores. In: FONSECA, Rubem. Amálgama. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. p. 79.

2 – _______. Ópera, foder e sanduíche de mortadela. In: FONSECA, Rubem. Calibre 22. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. p. 91.

3 – _______. Mecanismos de defesa. In: FONSECA, Rubem. Secreções, excreções e desatinos. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 2010. p. 119.

4 – _______. Réveillon. In: FONSECA, Rubem. Calibre 22. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. p. 45.

5 – _______. O mundo vai mal. In: FONSECA, Rubem. Carne crua. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014. p. 105; 107.

6 – _______. Perspectivas. In: FONSECA, Rubem. Amálgama. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. p. 49.

7 – _______. Livre-arbítrio. In: FONSECA, Rubem. A confraria dos espadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014. p. 9.

8 – _______. Outro anão. In: FONSECA, Rubem. Calibre 22. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. p. 95.

9 – _______. Foda-se. In: FONSECA, Rubem. Amálgama. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. p. 155.

10 – _______. A força humana. In: FONSECA, Rubem. A coleira do cão página. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. p. 13.

11 – _______. A opção. In: FONSECA, Rubem. A coleira do cão página. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. p. 97.

12 – _______. Amar o seu semelhante. In: FONSECA, Rubem. Axilas e outras histórias indecorosas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. p. 187.

13 – _______. O misantropo. In: FONSECA, Rubem. Axilas e outras histórias indecorosas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. p. 206.

14 – _______. À maneira de Godard. In: FONSECA, Rubem. A confraria dos espadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014. p. 89.

15 – _______. Lúcia Mccartney. In: FONSECA, Rubem. Lúcia Mccartney. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. p. 46.

 

 

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