por Sarita Borelli*
Nos tempos idos de 2014, trabalhava em uma instituição na qual tive oportunidade de conhecer pessoas incríveis. Na época, surgiu a ideia de fazer um clube do livro com esses novos amigos, baseada num filme que assistira O clube de leitura de Jane Austen (2007), porém, diferente daquele, decidimos ler os livros dos ganhadores do prêmio Nobel retroativos àquele ano. Começamos com Patrick Modiano (1945-), ganhador do Nobel de 2014, e o seu livro Uma rua de roma (1978).
A experiência com os envolvidos no clube foi tão interessante e divertida que fomos adquirindo mais adeptos durante a leitura. Após terminadas as discussões do livro de Modiano, fizemos uma enquete para saber qual título leríamos do prêmio Nobel de 2013, Alice Munro (1931-). O resultado foi o livro Ódio, amizade, namoro, amor, casamento (2001), cujo nome, devo admitir, não me atraiu nem um pouco.
Alice Munro é canadense e iniciou sua carreira de escritora com crônicas, em 1950, consolidando o seu trabalho, a partir de 1976, e se tornando conhecida por seus contos. Com os seus mais de 10 livros publicados, Munro ganhou grandes prêmios literários, como o The Man Booker International Prize, em 2009, e o já mencionado Nobel de Literatura, em 2013. Quase todos os seus contos se passam na província canadense de Ontário e tratam de relações pessoais e temas cotidianos.
Sinceramente, quando li a biografia da autora e o teor de seus contos, fiquei um pouco reticente quanto à Munro. O que senti com relação ao seu livro, antes mesmo da leitura, caracterizava um machismo. Primeiro, por se tratar de uma escritora mulher – o que é absurdo, pois eu também sou mulher –; e, segundo, por pensar que o livro, pelo seu título, seria uma literatura “menor”. Está incutido em nosso imaginário que questões referentes às relações pessoais e cotidianas, como as palavras que compõem o título da obra de Munro, fazem parte do âmbito privado da sociedade, para ser mais exata, do âmbito individual e doméstico, associado às mulheres. Em contrapartida, teríamos os assuntos tidos como universais que fariam parte do âmbito público, associado aos homens. O espaço doméstico é visto como um lugar de afeto e, portanto, desvalorizado, assim como suas derivações.
Outra questão importante é que as autoras são pouco divulgadas e premiadas. Apesar de Munro ter ganhado prêmios, é muito fácil listar dez autores que gosto e muito difícil fazer o mesmo quando se tratam de autoras. Na academia, ouvi falar um pouco de Clarice e Virgínia e muito dos homens que deixaram suas marcas na literatura brasileira e universal.
É doloroso quando nos reconhecemos como reprodutores desses conceitos, porém essa reflexão tem encontrado voz e espaço em discussões sobre gênero, no ativismo feminista e em campanhas como #Leiamulheres.
Voltando à Munro e antes de pensar em dar chance para as autoras, não consegui me interessar prontamente por sua temática e biografia, pois não anunciavam uma fuga do individual e do doméstico (reflexão que nunca havia feito sobre um escritor); porém, fazia parte do clube, e o livro havia sido escolhido democraticamente (pois, às vezes, as escolhas democráticas são respeitadas); fora isso, de acordo com as regras que eu tinha ajudado a criar, não podíamos pular nenhum Nobel. Dito e feito. Comecei a ler Munro, bem vagarosamente, ou seja, sem vontade nenhuma.
Algum tempo depois me vi distante do cotidiano dos meus amigos e esse distanciamento foi um ótimo motivo para eu encostar o livro de vez – infelizmente o clube não resistira à debandada geral – e retomar o Crime e castigo, que nunca conseguia terminar.
Voltei a ler Munro neste ano, despretensiosamente, com a intenção de dar mais espaço em minha vida para a literatura escrita por mulheres. Não sei se alguém daquele fadado clube terminara a leitura, mas gostaria de compartilhar algumas impressões que tive.
Ódio, amizade, namoro, amor, casamento é um livro de uma beleza singela e marcante. Em todos os contos, Munro retrata o cotidiano de personagens que passam por uma transformação. Apesar do cenário distante, é muito fácil reconhecer pessoas e a si mesmo no livro, ou seja, Munro transborda com questões universais os muros da casa. Decisões e esperanças que transformam as nossas vidas, parentes icônicos que inspiram, amizades que confortam, doenças que oprimem, a morte e o esquecimento em sua maior parte são narradas por protagonistas mulheres extremamente complexas.
Munro retrata a vida de forma magistral e consegue transparecer a inquietude e a verdade humanas. Muitas vezes, durante a leitura, fui do riso ao choro; sobretudo, ficava com aquela sensação quente de acolhida e do pacto de ser humana, com virtudes e defeitos.
Aproveite a leitura!
*Sarita Borelli é pós-graduada em Design Editorial pelo Senac, graduada em Letras pela Universidade de São Paulo, designer, editora responsável pela Editora Gota e idealizadora da Revista Aluvião.
Adorei o site, meus parabens!